Sustos de todo tipo- Setembro de 2021.

2562 Words
Setembro de 2021. Como as águas de um rio, as águas do tempo passaram mais rápido do que as da queda de uma cachoeira. Os Esteves, durante esse período, trabalhavam duro para levantar Bella Flor, trabalhavam com as mãos na terra para concretizar seus sonhos, dar corpo ao seu projeto. Bella Flor tornar-se-ia uma fazenda de flores diversificadas e coloridas. _ Preciso de adubo!- pediu o pai, segurando um broto de roseira na mão. Evaristo olhava feliz da vida para o seu roseiral que estava tomando forma. Tinha feito uma espécie de laboratório para poder fazer o cruzamento e enxerto das espécies. Queria criar uma nova espécie de rosa, especial, uma que ninguém nunca tivesse visto. Seria seu primor. _ Aqui, pai, acho que precisaremos de mais dessas coisinhas para poder colocar esses gravetos cheios de espinhos - falou o menino, erguendo o pequeno saco de um quilo e colocando-o sobre o enorme balcão. O progenitor riu, seu filho definitivamente não seguiria os seus passos. Não levava jeito com as plantas, sequer pronunciava corretamente o nome dos recipientes próprios para plantar e manejar os vegetais, sequer proferia muda; eram mudas e não gravetos recheados de espinhos. Era por volta das dezesseis e trinta, o senhor Esteves estava preocupado com sua filha do meio, a menina ainda não tinha chegado da escola. Camila ia e vinha de bicicleta, um veículo composto de um quadro ('conjunto de tubos metálicos'), de segunda mão que o pai comprou na cidade, num brechó. A pequena ficou extasiada com o presente, tinha a pintura descascada, alguns pontos de ferrugem, no entanto o que ela enxergava não era a beleza do item, mas sim o esforço que o pai fez para lhe presentear. _ Sua irmã ainda não chegou? - perguntou preocupado, olhando pela milésima vez no seu relógio de pulso. _ Não, daqui a pouco ela está por aí. - falou o menino sem dar muita importância - Para que servem essas bolinhas coloridas? - perguntou curioso. _ Adubo, Júnior. - respondeu o pai, plantando a mudinha. _ Eita! Todos esses potes! Nossa, são muitos!- exclamou perplexo. - Cada um tem uma ação específica, assim como cada planta precisa de adubos específicos, não posso adubar uma orquídea com um adubo de rosa, traz danos para a planta. - explicou calmamente o pai. Em outro ponto de Holambra, o dourado do entardecer jogava seus raios bonitos sobre a menina Camila, ela vinha pedalando pelo acostamento da rua; uma brisa fresca e morna soprava, acariciando o seu rosto pequeno. Camila sorriu, abriu os braços e fechou os seus olhos castanhos por alguns segundos. Aproveitando a sensação de liberdade, logo à sua frente, parado, prestando atenção na cena, estava Varuna. Ele contemplava a beleza daquilo, parecia uma pintura, o vento resvalando nos fios, fazendo alguns irem parar no rosto da menina, o sorriso genuíno, os braços magros esticados no ar, os raios de sol mesclando a pele clara com os tons de dourado e alaranjado. Ele sentiu algo, sentiu e não soube identificar, mas de uma coisa ele sabia com toda certeza: que seu corpo espectral apreciava em demasia observar a menina. Camila tinha algo que lhe despertava fascínio, não sabia o quê; só sabia que despertava. Varuna queria ter algo para poder eternizar aquele momento, aquele quadro da vida da garota. Mas não tinha, somente sua memória espiritual. Camila abriu os olhos e espantou-se ao ver um borrão disforme à sua frente, levou um baita susto, foi ao chão num baque amortecido pelo mato do acostamento. A garota teve o cotovelo esfolado e um pequeno corte na parte mais fofa da mão, corte pequeno, porém ardia na mesma proporção de um corte com maior extensão. _ Ai! - exclamou de dor ao erguer-se, olhou as feridas, não tinha como limpá-las. Não teve alternativa senão subir na bicicleta e voltar a pedalar para casa, agora sem fechar os olhos. A menina atribuiu a visão estranha que teve às moscas volantes. Acreditava que certamente precisaria, mais cedo ou mais tarde, ter uma consulta com o oftalmologista. A pequena chegou em seu lar, pisou na sala enorme e logo Alda apareceu, vindo da cozinha. A mulher estancou ao olhar para a filha. _ O que houve, Camila?- perguntou aos gritos. A filha tinha manchas de sangue na camisa de cor clara, o uniforme ganhou pontos de cor escarlate, vários; cabelos com folhas secas e pedaços de mato, braço sujo de terra e olhos marejados. _ Eu caí de bicicleta. Me assustei... - a frase foi retalhada. O outro pedaço da explicação a menina engoliu. Como falar que viu moscas volantes? Isso foi o que quis acreditar, quando pedalava sem as mãos no guidão e de olhos fechados. Seria castigada pela progenitora por perpetrar tamanha imprudência, isso se confessa-se sua " arte". _ Se assustou com o quê, menina! - a mãe vociferou aflita, tocando no rosto da filha, olhos maternais investigativos procuravam por feridas e edemas. _ Só pode ser aqueles cachorros miseráveis do sítio da esquina. Hoje de manhã, quando eu levava o Júnior, as pragas avançaram em nós dois, quase que eu caí. - Tabata entrometeu-se na conversa, dando o seu parecer. _ Isso não pode ficar assim! Vou falar pessoalmente com o dono desses animais. Cachorros devem ficar nos quintais de seus donos e não nas ruas, trazendo problemas! - Alda disse escandalosamente, passando a mão na chave do carro. _ Mãe, não! Por favor, não faça escândalos. - pediu a menina angustiada. _ Não irei deixar você correr perigo, Camila! E se você levasse um tombo no meio da rua e um carro te atropelasse , hein?! Poderia morrer esmagada pelas rodas de algum veículo, menina! Não isso, não! Essa história de cachorros atacando meus filhos acaba aqui! - disse severamente a matriarca, passando a mão nas chaves do carro. Alda disparou porta afora, no mesmo instante em que Evaristo e Júnior chegavam. _ O que há? - perguntou o homem atordoado. No entanto, ficou pálido ao olhar para a filha, que estava em péssimas condições. - Por Deus, Camila! O que aconteceu com você! - bradou assustado. _ Cachorros, pai. Os mesmos que quase me derrubaram com Júnior na parte da manhã. Mamãe foi resolver o problema. - Tábata proferiu, retirando as folhas secas e os talos de matos do cabelo da irmã. Evaristo retornou no mesmo pé que veio, correu atrás da esposa, o assunto também era dele. Ninguém iria ser uma ameaça para seus filhos, muito menos cachorros. _ Anda, Camila, vai tomar um banho e cuidar desses machucados, mamãe deixou uma cesta com medicamentos no guarda-roupas dela. - orientou a irmã e assim a pequena fez. A garota subiu, pensativa, sentindo dor e sentindo-se péssima, não teve forças para desmentir a versão de Tabata para o seu pequeno acidente. Pensou que se falasse a verdade seria taxada de insana, além do esporro que levaria dos pais por sua imprudência. "Talvez se falasse os fatos detalhadamente, poderia ser que eles acreditassem."-pensou por alguns instantes. Ficou perdida em suas questões, Camila chegou no quarto, olhou para a cama e recordou-se da noite em que acordou deitada e com o corpo coberto com uma manta, não sabia como fora parar lá, recordava apenas que estava na cozinha e, de repente, acordou no colchão macio. Recordava, também, do sonho, ou melhor, pesadelo, o copo que movimentava-se sozinho pelo balcão. A pequena sacudiu a cabeça, deixando para trás os pensamentos que faziam gelar os seus ossos. _ Fantasmas não existem, Camila, deixa de ser boba, garota! - ralhou consigo mesma, jogando a mochila na cadeira de couro que ficava de frente para uma escrivaninha. A menina se pôs de frente para a janela aberta, fitando os fundos da propriedade. Lá longe, havia (ainda tem) um liame entre o verde da vegetação e o azul do céu. Naquele tempo, era o dourado com nuances alaranjadas que fazia as vezes no lugar do azul celeste. "Magnífico", pensou. Sentiu alguém aproximar-se, olhou para o seu lado esquerdo, mas não viu nada e nem ninguém. Retornou a olhar para a visão esplêndida, sem ter noção de que estava acompanhada. Varuna estava ao seu lado, os dois contemplando o fim do dia. Ela não sabia que ele costumava fazer isso, observar o entardecer se esvair e as primeiras estrelas despontarem no veludo do céu. Era um dos momentos, quando em vida, em que o espectro despia-se do homem cheio de problemas, do homem que vivia sob uma pressão absurda e tornava-se apenas um espectador da beleza noturna. Camila deixou a janela e abriu a porta do guarda-roupas, procurava algo confortável para vestir, porém seus olhos pararam na jaqueta. Suas mãos pequenas pegaram a peça que se encontrava dobrada, tinha sido higienizada e muito bem desinfetada. Esticou a jaqueta na cama, olhou para ela, gostava da cor, da textura e maciez. Varuna observava atentamente cada pequeno gesto da encarnada. Aproximou-se da cama, vendo uma de suas peças de roupas em posse da pequena. A única que sobrou depois da família ter doado suas vestimentas. Camila retornou serelepe para o roupeiro, agarrou uma regata e uma calça de moletom, trouxe consigo, também, um par de meias e roupa íntima; recolheu a jaqueta e foi para o banheiro. Varuna sentou-se na cama, sorriu, sim, ele sorriu, coisa que há muito não fazia. Queria ver o espantalho que a pequena iria ficar dentro da sua jaqueta. Não demorou muito para Camila sair do banheiro vestida com folga, num casaco enorme. Ela tinha dobrado as mangas , por muito pouco o casaco não encostava no chão. Ao contrário do que Varuna pensava, a peça deu uma certa graça à menina. No entanto, ficou intrigado quando viu que ela segurava algo bem pequeno entre os dedos da mão direita: era a etiqueta da roupa, etiqueta essa que tinha suas iniciais bordadas, V. R., um cuidado para não perder as peças se porventura a lavanderia fizesse confusão com outras peças semelhantes. Ele aproximou-se dela, ficando atrás das costas da menina, olhando por cima da pequena cabeça cheia de fios úmidos. "_V e R, o que poderia ser, meu Deus. Mamãe disse que a jaqueta é masculina, então foi de um homem, rapaz talvez. Agora, nome de homem com a letra V? Hummmm, Virgílio, Victor, Vitorio, Valter, Vinícius, Vicenzo, Valentim, Vagner, Valdeci, Vladimir, Venâncio, Valerio, Viriato, Valdir, ... e o R, seria de um nome composto ou sobrenome?" - perguntou-se curiosa. O espectro inclinou-se bem próximo do ouvido da garota e sussurrou: Varunaaa... Camila escutou um chiado dentro do canal auditivo; o barulho provocou um incômodo, um desconforto. A pequena fez uma careta, levando a mão esquerda ao órgão . O fantasma percebeu que ela não era imune à sua presença, apenas não estavam em sintonia, na mesma cadência de conexão. O fractal gostou de ouvir bem de perto a voz da pequena, que lhe trazia conforto, uma sensação de paz, de calmaria. Coisa que não tivera desde que desencarnou. A pequena curiosa foi até a escrivaninha e guardou a etiqueta numa das gavetas, saiu do cômodo, indo em busca de uma pomada para aplicar na ferida, tinha medo que o corte viesse a inflamar. O espírito perturbado mirou na gaveta, procurando entender a razão para ela guardar aquele pedaço de tecido. Não demorou para a garota atravessar a porta, e ele ficou por ali, estudando os passos e comportamentos da fedelha. Camila abriu o zíper da mochila jeans, retirou de lá livros e cadernos, organizou tudo sobre o tampo da mesa. Ela cursava, na época, o nono ano do ensino fundamental e tinha tarefas escolares para fazer. A garota sentou-se na cadeira e começou a dar cabo das lições, não suportava matemática, mas esforçava-se ao máximo para não ficar com pendência, odiava ter que fazer recuperação. Se a prova era uma carrasca, imagina uma prova de recuperação. O tempo foi passando, mas para Camila não, ela sequer percebeu as estrelas chegarem em alto céu. Foi retirada da finalização de seus exercícios, quando seu irmão entrou esbaforido pela porta do quarto. _ Magrela, mamãe mandou você descer para lanchar, hoje não tem janta. - falou de uma vez só, sem dar pausa para respirar. A garota irritou-se com o apelido i****a e largou o lápis, revirando os olhos. _ Ótimo! Só assim você faz um regime! Gorducho! Chucrute! - bradou irritada, empurrando a cadeira com rodízio para trás. _ Chucrute, não! Seu Bicho-p*u! Aquela lagarta verde não tem nada a ver comigo! - gritou irritado, mãos cerradas em punhos. Se tinha algo que deixava Júnior ebulindo de raiva era chamá-lo de Chucrute, personagem de um filme infantil. _ Se olha no espelho e verá as semelhanças: as muitas dobrinhas! - a garota disse bicuda e de braços cruzados. _ Sua tripa-seca, bambu em pé, palito. Olha, fiz até uma música em sua homenagem: 'Sobe, sobe, balãozinho! O que tem dentro dele? É um palitinho! Camila, Camila, Camila!' Cantou o moleque a plenos pulmões. _ Seu bolotudo de uma figa! - vociferou a menina irritada com a analogia, detestava comparações. Camila correu atrás do irmão que evadiu-se do local com passadas céleres; Júnior escondeu-se na primeira porta que viu aberta. Girou a chave e, uma vez fora do alcance das mãos de sua irmã, cantarolou a música que descobriu ser um espinho no calcanhar da menina. _ Seu... ahhhrrrr!!!! Garoto!!! - bradou vexada, dando alguns socos na folha de madeira. Júnior ria da sua proeza, no fundo era apenas uma implicância de cunho inofensivo, pueril, algo próprio da tenra idade de ambos, nada que gerasse alguma mágoa ou mácula na relação afetiva dos dois. Só que o pequeno reconchudo era deveras traquinas e achou pouco a canção, queria aprontar uma das grandes com Camila. Aguardou pacientemente a irmã desistir de esperar por sua saída, até que os sons de passos vindos do corredor, afastando-se da porta, lhe deram a segurança necessária para poder sair do seu forte de proteção, um quarto minúsculo e vazio, para poder pôr em prática sua armação sorrateira. Girou a chave, acionou a maçaneta e saiu espreitando todos os ângulos possíveis, estava livre. Correu até a porta do quarto de Camila, com um sorriso m*l intencionado nos lábios. Porém, este logo murchou, os olhos do menino tomaram proporções enormes, a cor saudável lhe foi substituída por uma palidez de fazer dó. Júnior congelou no lugar, seus olhos estavam espetados na cena que se desenrolava, as folhas do caderno da sua irmã estavam mexendo-se sozinhas, sendo viradas de um lado para o outro, como se alguém tivesse dando uma olhadinha em como a garota estava indo nas aulas, nas matérias. O pestinha soltou um grito de horror, saiu desembestado berrando pelo corredor afora, alarmou os seus familiares. Todos deixaram seus lugares e correram para a sala, foi o tempo cronometrado de ver Júnior rolar escada abaixo. O menino tinha tropeçado nas próprias pernas quando aproximava-se do início da descida. Ninguém teve reação para ir prestar socorro ao garoto, parecia cena de filme, onde ninguém acredita no que está vendo. O corpo pequeno parou no chão, Júnior gritava de dor e reclamava do pé. Evaristo foi o primeiro a movimentar-se em direção ao filho, logo todos estavam em torno do menino. O progenitor pegou o garoto no colo e saiu porta afora, seu único filho homem precisava ser examinado por um médico.
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