Domigo período noturno.
De longe o espectro não deixou de acompanhar os movimentos de sua amada. Camila tratava todos com educação e simpatia. Uma vez ou outra, Marcelo esticava seus olhos gulosos para cima da moça e Varuna esfriava a tempertaura da sala; todos sentiam inclusive sua amada.
Disfarçadamente, Camila olhava para o espectro e fazia alguns sinais para ele cessar essa mágica de quase congelar todos, parecia que o fantasma tornou-se a Frozen versão masculina.
A maquete foi ganhando corpo, forma e no final ficou perfeita; retratando os descasos que temos com o nosso meio ambiente. Era dividida em quatro partes: a primeira era a representação do fogo consumindo nossas florestas, tudo por causa do efeito estufa e desequilíbrio climático; a segunda são os nosso rios e mares poluídos ( incluindo que até os pescados tem sido atingido por isso, uma vez que segundo uma fonte de estudos a carne dos tubarões apresentam resíduos de cocaína, além de uma substância sintetizada no organismo humano depois do consumo do entorpecente, ou seja, as fezes e urinas despejadas no esgoto e caem no mar estão afetando e muito a vida marinha); a terceira parte é o solo degradado, seco pelas faltas de chuvas e a quarta parte é a extinção de toda a vida neste planeta se tudo continuar nesse caminhar.
O projeto ficou bonito, contava com árvores feitas de arames e espumas coloridas com tinta verde, chamas de fogo feita com massinha de modelar, pequenos animais de plásticos; rios feitos de gel e coloridos com tinta preta pequenas miniaturas de garrafas, sacos plásticos, pneus e casas feitas de caixa de palito de fósforo, cujo os canos de esgoto saiam destas para as margens do rio.
O trabalho estava perfeito. Varuna descobriu nessa tarde que gostava de ver Camila fazendo seus projetos; a moça era focada, detalhista e perfeccionista. Gostou disso, pensou que se fosse vivo e tivesse a jovem como sua esposa, ela seria uma grande parceira nos negócios. É em pequenos detalhes que conseguimos ver e perceber pessoas de sucesso e grande potencial.
Por volta das dezesseis e trinta, a garotada tinham terminado com a execução do projeto. Evaristo ficou de levar a maquete, quando fosse levar a filha na escola; segunda-feira era um dia que o " camelo "( bicicleta) iria tirar uma folga.
Alda sirgiu na sala convidando todos para um lanche. A alegria foi geral, todos foram deixando a sala, mas quando Camila ia saindo atrás dos demais, Marcelo segurou a menina pelo braço.
_ Quero falar com você, por favor, sozinhos. - pediu o moço de pele morena.
Camila aceitou, uma vez que queria por um fim nas esperanças vazias que o garoto tinha sobre os dois terem alguma coisa.
A moça guiou o menino para fora da casa, foram caminhando para longe. Para Marcelo, somente a moça e ele estavam ali; pobre rapaz apaixonada desconhecia a existência do morto apaixonando que lhe lançava olhares pesados e afiados.
_ Fala, Marcelo. O que quer?- indagou a menina com a voz mansa e baixa.
_ Quero você. Eu sei que fui um perfeito i****a e que te magoei profundamente. Fiquei irritado e isso me tirou a paciência. Me perdoa, quero uma chance de fazer tudo direito, namorar contigo .- revelou o garoto para o desepero de Varuna.
O espectro sabia que sua amada teve sentimentos pelo moleque; julgava que dentro do coração de Camila ainda poderia existir resquícios deste e que por causa disso, ele, Varuna, seria escurraçado da vida dela.
_ Não irei mentir, Marcelo, eu há algum tempo gostei de você. Pensei que fosse uma pessoa, bem para ser sincera, acabei idealizando um Marcelo e descobri outro, totalmente diferente, naquele encontro. E acho que foi bom, porque seria questão de tempo para me decepcionar contigo. Hoje posso te dizer que o que terá de mim é o mesmo que os demais alunos da nossa sala tem: amizade. Não posso e nem quero que seja algo além disso. Espero que entenda e não insista.- Camila expôs. Mostrou o quanto é madura e decidida.
Marcelo detestou ouvir aquelas explicações que na opinião dele era apenas a jovem fazendo " ** doce", por ele ter sido um tanto rude no fatídico encontro.
_ Não, eu não entendo! Eu sei que " pisei na bola ", mas isso não é motivo para " matar" com as nossas chances de sermos um casal. Poxa, Camila, seja minha; você não sabe quantas noites não dormi pensando em você, quantas vezes tive que tomar banhos frios porque o desejo estava forte demais. Ai, chego hoje aqui e vejo você despida daquela menina do campo, transformada nessa mulher gostosa exibindo pernas, barriga e só com essa tira de tecido cobrindo seus s***s; fico doido. Você acende o t***o em mim, com esse seu rostinho de menina inocente e esses lábios rosados. - proferiu Marcelo, fazendo com que Camila ficasse vermelha.
_ Sinto muito. Minha resposta é somente uma: não. Eu tenho alguém, e esse alguém é muito importante para mim. Não merece ser magoado, traído e menosprezado. Essa pessoa merece tudo de mim; meu amor, minha consideração e meu carinho. Sou dele e ele é meu, nos completamos de uma maneira singular. Não cabe terceiros.- revelou a moça para desepero de Marcelo e felicidade de Varuna.
O fantasma teve todos os seus medos expurgados com essa confissão. O fractal, pela primeira vez em sua existência, sentiu-se especial. Nunca ouviu uma confissão tão bonita, direcionada para ele, sair da boca de uma mulher. Às que teve, só tinham enteresse em quem ele era, ao meio que pertencia e no dinheiro que possuía. No fundo já tinha se acostumando com esse tipo de situação. Aprendeu a ser um "coiote, um João sem braços, um boca aberta", sendo na verdade um lobo no topo da alcatéia. Conseguia o que queria e depois o pé cantava bonito nas bundas das damas.
Agora depara-se com isso; um amor puro, desinteressado, desprovido de malícias e segundas intenções. Ele não tinha nada, nem um corpo, não era ninguém na face da Terra, apenas pó e lembranças que a cada dia que passa vai ficando desbotada na memória dos demais.
Olhou para a sua menina com tanto amor que não cabia nele, super aqueceu e Marcelo sentiu.
_ p***a! Que lugar dos diabos é esse aqui! Lá dentro um frio de lascar e aqui fora um calor dos infernos!- ralhou sacudindo a camisa com as pontas dos dedos polegar e indicador- Eu só quero saber o nome do filho da p**a, que tomou o meu lugar, irei arrebentar com ele, mandá-lo para o inferno! Quem é o babaca, Camila? Quem é o comedor de b****a que acha que é macho suficiente para tomar o que é meu?- indagou o rapaz, " crescendo-se" para cima da garota; tentava impor medo e subjuga-la com o seu porte físico e altura.
_ Não te interessa! A vida é minha, o corpo é meu e não sou nada sua! Segue teu rumo e me esquece! Pensa que pode colocar terror psicológico em mim, mas não vai. Eu não tenho medo de você, suas ameaças para mim são palavras ao vento! Cresce, Marcelo, e amadurece, mulher quer ter um homem do lado dela e não um fedelho cheio de caprichos.- Camila colocou as garras de fora, mostrando que os ensinamentos dos pais lhe surtiram muito efeito.
Alda e Evaristo se empenharam em criar mulheres fortes, dona de si. As verdadeiras rainhas, para que fossem a dona do castelo, do dragão, do reino e da p***a toda; onde o príncipe fosse um mero convidado e que elas não precisassem dele para serem salvas, porque elas dariam conta de salvar-se sozinhas.
Marcelo ficou estarrecido como a menina mostrou uma face que não tinha revelado para ninguém. Varuna acompanhava tudo cheio de orgulho. Era perceptível aos olhos do fantasma o quanto sua amada era forte e tinha fibra. Apreciou a demonstração de que era ela própria que tinha as rédeas de sua vida e suas escolhas; não cedia a pressões.
_ Não precisa me falar nada, irei descobrir sozinho. E quando eu achar esse desgraçado ele vai se arrepender de colocar os olhos em cima de você.- falou o rapaz, trincando o queixo.
A jovem não entendia por qual razão muitos homens não gostam de ouvir um " não ". E eu digo o mesmo. Muitos casos de feminicídio muitas vezes estão associados a respostas negativas das vítimas. Certa vez, vi uma reportagem onde duas mulheres foram mortas a tiros porque disseram "não" aos seus ex-namorados quando eles tentaram reatar depois de os relacionamentos acabarem. Outra jovem levou várias facadas do ex-companheiro inconformado com o final da relação e mais duas garotas foram mortas por homens que não aceitaram a recusa delas para passeios. É inadmissível e incabível algo desse tipo. As mulheres não são objetos ou posse de homens, elas são seres que merecem todo amor e carinho, respeito e compreensão; jamais deveria serem miradas como um objeto.
Acredito que tudo se deve à construção social de uma cultura machista em que o homem acredita que ele é a pessoa que deve tomar as decisões. Esse lado social que influencia em uma cultura machista dominante, somado ao histórico cultural coloca o homem sempre como “o explorador e o caçador” culminam nesse crescimento de violência contra a mulher.
Na concepção machista, o "não" nunca pode estar associado à mulher. Porque ele é o poder dominante, ou seja, pertence ao homem.
Desde que nascemos somos condicionados às ações que foram construídas para serem
produto da nossa cultura.
Definindo às ações que foram construídas para serem “de menino” e “de menina”.
O que corrobora para que o universo masculino seja visto como o da liderança.
Para a menina é ensinado e falado “senta direito, abaixa a saia, seja delicada” e para os meninos dizem “não pode chorar, seja homem, seja forte, fala direito como homem faz”. A cultura que é passada de geração para geração, condiciona essa forma de relacionamento nas crianças. Muitas das vezes, antes mais, hoje menos, quando um menino está puxando o cabelo da menina, por exemplo, a professora fala que ele faz isso porque “gosta” dela. O ensinamento equivocado parte dai; as meninas leva para o seu subconsciente que quando um menino gosta dela, ele agride. E para o menino é instruído , que ele tem que perseguir a mulher. Os desenhos tem essa representação: homem da era das cavernas puxando uma mulher pelos cabelos, e a mesma tendo o semblante de felicidade, quando surge alguém que modifica o contexto e retira a " vítima da mãos do agressor", a própria vítima bate no sujeito que interferiu no decorrer da cena, depois retorna para o agressor e tem seu cabelos sendo puxados; e o semblante retorna ao da felicidade.
_ O assunto está encerrado, Marcelo.- proferiu Camila, deixando o colega para trás.
_ Vou descobrir, Camila, e não te direi nada, mas haverá sinais. Compre um vestido preto, porque as flores você pode colher da sua plantação. - bradou o rapaz tendo o maxilar trincado.
Camila sorriu, Marcelo não viu.
" Não irei precisar, porque ele já está morto..."- sibilou, ninguém ouviu, nem mesmo Varuna que ficou do lado do garoto. Seu olhar era fixo, dali coisa boa não iria surgir.
O tempo correu, os colegas da menina já tinham ido embora. Marcelo, depois da conversa, sequer entrou outra vez na casa; foi para o carro, ficou esperando os demais por lá e quando foi confrontar por qual circunstância o levou a não provar do lanche, disse que não estava com apetite. Na verdade o rapaz amargava o não que recebeu e remoia varias vezes as palavras da moça que o descartou.
"Isso não vai ficar assim."- repetia ele feito um mantra; não tinha pensamentos bons e sim muito macabros.
A noite chegou, Camila, estava sentada em sua cama. Cheirosa, de banho tomado e usando uma camisola de seda branca, esperava pelo espectro. Não o viu depois de deixar Marcelo sozinho. Varuna tinha sumido.
Passava das onze e meia, quando ela sentiu a presença dele. As lâmpadas do quarto estava acesa, tudo iluminado, ele fez-se presente.
_ Onde estava, amor? Achei que não iria vir .- perguntou a moça, olhando para o pedacinho de tecido, a etiqueta, que segurava entre os dedos.
_ Andando por ai.- omitiu o seu feito, ela não precisava saber.
Camila ergueu-se da cama, foi até o seu amado e o abraçou.
_ Senti saudades, detesto entrar nesse quarto e não sentir você. Fica faltando algo.- revelou e o espectro beijou os lábios de sua amada.
Ao afastar-se, Varuna reparou na camisola transparente, nos s***s que estavam visíveis .
Camila puxou o morto apaixonado pela mão e o fez sentar na cama; abriu a palma da mão do fractal e colocou o pequeno pedaço de tecido bem no meio.
Os olhos da meninas ergueram-se para os dele.
_ É sua, eu sei, não adianta falar o oposto. Quando pretendia me contar. Eu tenho uma roupa sua dentro do meu guarda-roupas, há três anos visto essa peça e quero saber; quem é você? o que faz aqui? Por que tinha uma peça de roupa sua nesse armário ?- as indagações eram muitas e tinha chegado o momento de Varuna revelar-se aos poucos para sua amada.