No dia seguinte....
Camila preparava-se com mais esmero para ir à escola, isso perturbou Varuna, o espectro sabia a razão por trás disso: Marcelo.
Ela pintou os lábios, deixando-os muito mais rosados, no entanto o fantasma gostava deles na cor natural. A garota usou o perfume que ganhou de presente do pai em novembro do ano passado. Colocou brincos maiores e trançou as madeixas, o espírito estava com um pé dentro e outro fora do quarto, inquieto. Camila arrumava-se para outro, se enfeitava para outro, ela queria chamar a atenção de outro. Isso o magoou muito, Varuna teve raiva de si mesmo, chorou vendo a mulher que o enleava, indo para outro, mas o que poderia fazer sendo apenas um espectro?
Naquele dia, especificamente, ele não acompanhou Camila para a aula, não queria ferir-se mais do que já se encontrava, recolheu-se na sua insignificância diante dela, diante da moça que acendeu a chama do bom sentimento dentro do seu corpo espiritual.
Antes mesmo que a menina saísse do quarto, ele sumiu, foi para o galpão onde a moto sucateada estava coberta por uma lona; lembrança triste, lembrança material dos tempos em que tinha um corpo e respirava.
_ Ah, Camila, se fosse em outros tempos! Se eu tivesse minha vida de volta, meu corpo, minhas vontades; você, minha flor, faria parte deles.- murmurou, com o pensamento nela.
Foi por volta das vinte e uma horas que o espectro retornou para a fazenda, para o quarto, e ela não estava.
Varuna saiu andando pela casa em busca da moça, achou-a no quarto da irmã, parou no limiar da porta e ficou ouvindo a conversa de ambas.
_ Preciso de ajuda, tenho um encontro com o Marcelo! - confessou Camila.
Fazia pouco tempo que a menina tinha adentrado no quarto da Tabata. Depois do jovem Marcelo e ela ajustarem os detalhes do encontro e trocarem os números dos celulares, isso depois do término das aulas, Camila retornou aflita, queria ficar mais bonita para o dia em que tinha em mente beijar um menino pela primeira vez, emoção cantava junto com a expectativa.
_ Uí, Marcelo, hein! - Tabata proferiu empolgada.
A menina cobriu o rosto com as mãos, corou de uma maneira graciosa, seu rosto ficou da cor carmim.
_ Vai me ajudar ou não? - perguntou num fio de voz.
_ Ajudo, lógico, só que quero carta branca. - falou examinando o rosto da irmã.
_ Sério, Tabata, e se eu não gostar de alguma coisa? - indagou apreensiva.
_ Impossível, bichinho do mato. Você vai mirar-se olhar no espelho e verá uma nova Camila. Deixa comigo! - exclamou, erguendo-se da cama.
Camila julgava-se uma menina feia, desengonçada e desinteressante, muito diferente de Tabata, que sempre foi bonita e exalava sensualidade com facilidade. A irmã sempre se destacava em tudo. Por esse motivo, Camila ficou no seu cantinho, deixava a pequena lâmpada que tinha em si no meio termo, nunca apagada, também nunca reluzindo em força total.
Só que agora, ela queria brilhar para Marcelo, queria que o rapaz percebesse que ela estava mais bonita, que olhasse para ela com amor. Isso, amor, era esse sentimento que enrubescia seu rosto toda vez que via o garoto.
_ Quando é o passeio? - indagou Tabata.
_ Amanhã, estou muito nervosa. - revelou, olhando aflita para a irmã.
_ Não tem motivo. Vocês terão uma conversa e depois é só beijos e abraços, uns amassos.
Pronto, Camila levantou em cólicas, apertando as mãos uma na outra. Desandou a dar voltas pelo quarto.
_ Ei, ei, que isso? É só um menino, não é uma assombração! Que nervosismo é esse? - A irmã mais velha parou a mais nova, segurando pelos seus ombros.
_ Acho que se fosse com uma assombração eu estaria mais calma. Fantasmas não saem por aí espalhando que você beija m*l. - respondeu com tanta sinceridade que brotou uma desconfiança em Tabata.
A irmã mais velha olhou com minúcia para Camila.
_ Espera! Não! - disse, olhando para a moça em linha fina para depois escancarar os olhos - Você nunca beijou ninguém! - completou em alto som.
Os ombros de Camila caíram, a jovem fitou o chão e afirmou com um gesto feito com a cabeça.
Tabata olhou para a irmã em choque.
_ Em que mundo você vive, garota? Na sua idade, eu nem era mais donzela. - revelou.
Camila olhou boquiaberta para Tabata, ficou sem saber o que dizer.
Varuna, que acompanhava tudo, olhou para Camila com novos olhos, uma nova visão. Ela passou a ser, para ele, um anjo encarnado, desprovida de malícia e pura; pura como as santas, as freiras com seus votos de castidade.
O espectro sentiu uma energia diferente vibrar em seu corpo imaterial.
_ Tabata! - exclamou a jovem, estupefata com o que acabara de ouvir.
_ É super normal, Camila. Não precisa me olhar desse jeito, não roubei um banco ou assassinei alguém. Retornando ao assunto principal, que é você, me responde: gosta dele? - a pergunta deixou o fantasma em expectativa, queria ouvir um não sair da boca da menina, mas o que obteve foi um sim, para sua desgraça.
Tabata passou algumas lições para a jovem, como deveria se portar, não se mostrar afobada e nem muito interessada. Manter conversas inteligentes, fazer charme e, no momento do beijo, era só imitar o que o menino iria fazer e tudo terminaria bem.
Camila ouviu tudo atentamente, memorizando cada tópico para não cometer nenhuma gafe.
Depois de falarem sobre roupas, sapatos e saltos, foi o momento de treinar, a pequena nunca tinha enfiado uma geringonça alta daquelas nos pés, sempre gostou dos calçados sem saltos, tinha medo de torcer os tornozelos se equilibrando em cima daquilo .
Tabata pegou um par qualquer de sandálias , mas de saltos bem altos e pediu para a irmã calçar. Assim, procedeu a jovem. As aulas começaram, de m*l a pior, Camila não levava jeito, quando não andava parecendo um pinguim, quase ia de cara no chão.
_ Vamos, não desista! Erga a cabeça, arrume as costas, solte o quadril e pise com a ponta do pé. - ordenava Tabata, parecia mais uma encarregada da seita da etiqueta do que qualquer outra coisa.
_ Essas porcarias não foram feitas para mim! Troço difícil, droga, certas coisas foram feitas para complicar, não é mesmo? - reclamou a menina.
Tentou mais uma vez andar em linha reta, não deu certo. Camila virou o pé e saiu catando cavaco, dos fundos do quarto foi parar onde Varuna estava encostado. Tabata se rachava de rir com o atropelo da irmã.
Camila só não se arrebentou no corredor porque segurou no caixonete da porta. Sentia dor no pé e no ego, era humilhante a situação, além de super desastrosa.
A pequena virou-se em direção à irmã, abaixou e retirou as sandálias, arremessou-as longe.
_ Nunca mais coloco uma praga dessas nos pés! - vociferou nervosa.
Tabata tentava inutilmente parar de rir da situação.
_ Vai usar o quê, então? - indagou entre estridentes gargalhadas.
_ Sapato normal e não essas coisas assassinas, não vou passar vergonha! - respondeu emburrada.
_ Não estou ouvindo isso! Camila, aquele seu sapato está um trapo, na verdade todos eles! Você não compra uma rasteirinha, uma sandália baixinha, parece homem só tênis, tênis e tênis. Olha para você, garota! Está apagada, se boicotando com essas roupas cafonas e sapatos. Até pensei que você fosse invertida. - confessou Tabata, pegando a sandália para guardar no seu devido lugar.
_ Invertida?! - indagou a menina.
_ Sim, aquelas que gostam do mesmo sexo, homossexuais. - esclareceu a irmã, acomodando o calçado na sapateira.
_ Gosto de homens, Tabata, não de mulher. Se me visto assim é porque aprecio! - falou, cruzando os braços.
_ Melhore, meu bem. Você está uma lástima. - retrucou, erguendo os olhos para Camila.
_ Pode pelo menos me emprestar uma roupa? Meus vestidos estão bastante gastos. - pediu, esperançosa.
_ Empresto, tem um preto, tubinho que vai ficar divino em você, ele nem dá mais em mim, andei engordando e o zíper não sobe de forma nenhuma. - proferiu, indo até o guarda-roupas.
O vestido era todo em renda, não uma renda elástica, mas uma renda Guipir forrada com seda. Uma peça bonita, bem cortada e costurada.
Tabata entregou a Camila, que pegou a roupa com muita ternura, afinal, seria usando essa vestimenta que iria dar o sonhado primeiro beijo.
A menina agradeceu e regressou para o seu aposento, feliz da vida.
Ela esticou o vestido na cama e foi em busca dos sapatos, escolheu um todo de verniz preto, separou um conjunto de brincos e pulseira, de pérolas, herança da avó paterna.
Deixou tudo organizado, num cantinho, dentro de uma gaveta da cômoda.
Sua empolgação era tanta que pensou que não conseguiria dormir, mas conseguiu. Adormeceu sob as vistas do fantasma que acompanhou de perto sua saga para se preparar para outro.
Varuna tinha consigo que nenhum encarnado teria qualquer coisa da sua Camila. Se ele não podia recolher e ter nada dela, ninguém mais teria. Egoísmo? Talvez.
Só que era mais do que isso, era algo incontrolável, voraz, gigantesco que o colocava curvado, às vezes desejoso. Não sabia que espíritos podiam sentir certos tipos de sentimentos, acreditava que o ódio, o ressentimento, vinha consigo, entranhado da época em que tivera encarnado.
Só que ele descobriu que não sabia absolutamente nada. O espectro levou um susto ao perceber que esse sentimento de posse era bem mais que isso, era amor. Ele, pela primeira vez em sua existência como essência micaélica, estava apaixonado; apaixonado depois de morto, uma paixão póstuma.
O fantasma viu-se perdido, sem saber como proceder com essa nova informação, mais do que uma simples ponte os separava, mais do que o oceano, era uma distância incalculável, eterna e funesta.
Não demorou para a moça despertar, algo não a deixou entrar em sono profundo. Ergueu-se da cama e abriu a janela, apoiou as mãos no parapeito e ergueu seus olhos escuros para o céu forrado de estrelas. Sorriu, gostava delas, da beleza propagada para os olhos de todos, seja rico ou pobre, todos poderiam desfrutar da magnitude da natureza divina, não era um regalo destinado para poucos. A menina repousou seu corpo na confortável poltrona.
Enquanto Camila estava sentada no móvel, propositalmente posicionado de frente para a janela, ela também era amante das estrelas. Varuna consumia-se com o calor desse sentimento.
O espectro foi para perto da parede que ficava a janela e de lá ficou mirando a bela moça.
"Minha, somente minha" - sussurrou e mais uma vez Camila escutou um chiado desconfortável dentro do canal auditivo.