Camila retornou para casa, levando consigo o seu amado. Não queria ficar longe do fractal, não podia, porque seu corpo doía imensamente pela saudade que lhe golpeava a alma.
A jovem adentrou em casa na surdina. Não fez qualquer barulho e, se fizesse, não seria captado pelos ouvidos de ninguém, uma vez que o vento começava a soprar intensamente lá fora.
O casal mais diferente e estranho que andou por essas terras subiu a escada e caminhou pelo enorme corredor. As mãos de ambos estavam sempre unidas; não era somente ele que tinha medo de perder sua amada; Camila tinha esse receio também.
A moça não sabia como funcionava essa situação fantasmagórica. Não tinha conhecimento de nada, sequer cogitava se haveria ou não um tempo estimado para um espírito permanecer entre os vivos. Quis muito perguntar sobre isso, mas teve medo do que poderia ouvir. Por isso, calou-se e trancafiou essa indagação no mais profundo dos baús.
Um trovão ruiu; seu som estridente e bravio fez a moça agarrar-se ao seu amor.
— Medo, minha rosa? — indagou Varuna, sentindo os tremores que o corpo delgado de sua amada apresentava.
— E como não! É apavorante, parece que algo gigantesco está sendo partido ao meio — respondeu, com os olhos arregalados.
— De certo que sabe que esse barulho estrídulo é provocado pela energia de um relâmpago que corta o ar — proferiu o morto apaixonado, beijando a fronte da garota.
— Eu sei, amor. Todavia, o barulho me causa sustos; é inevitável, não consigo sanar esse meu medo — confessou a menina, falando baixinho, bem meiga, e com os dedos brincando com um botão da camisa dele.
— É perturbador você ficar atemorizada com trovões, algo natural e explicado pela ciência, e ser namorada de um fantasma — Varuna riu ao terminar de falar. Não tinha realmente o menor cabimento.
Camila olhou extasiada para o espectro; os olhos da jovem brilhavam em demasia.
_ Sobre seu medo infundado de um elemento natural, visto que namora um...
_ Então você é meu namorado? - indagou encantada, com um sorriso ardente presente nos lábios.
_ Sim, minha pequena menina do campo, sou seu namorado. - Varuna respondeu, tocando com o polegar no queixo fino e delicado da sua dama.
_ Meu primeiro amor é também o meu primeiro namorado... - sussurrou a moça, abraçando o homem.
_ Não minta para mim, princesa. Estou perto de você há anos e sei que amou o infeliz que partiu. Portanto, não sou o seu primeiro amor. - falou Varuna, rememorando o episódio em que provocou o acidente de Marcelo.
Depois da segunda tentativa do moço de pele morena de tentar adivinhar quem era Varuna e errar, obviamente, Marcelo perdeu a paciência.
_ Se não é um demônio e nem um anjo, que raios é você? - indagou o garoto, ainda com o motor do carro desligado.
_ Irei te dar algumas dicas.- disse o espectro, olhando de soslaio para o menino. -Você queria muito me conhecer, disse que me encontraria por conta própria; então resolvi poupar seus esforços.- proferiu com um sorriso sarcástico no rosto. Não exibia os dentes; no entanto, o escárnio era bem presente.
Marcelo pensou, pensou e pensou. Não chegava a conclusão alguma. Até que seus olhos ficaram enormes e suas pupilas bem pequenininhas. O garoto não podia e nem queria acreditar; a única pessoa que queria conhecer era o sujeito louco que se meteu entre Camila e ele.
Em poucas horas, Marcelo tinha arquitetado um plano baculoso. Saberia o nome do maldito que roubou dele o coração de Camila; depois, descobriria seu endereço e iria à forra. Mataria o desgraçado com dois tiros na nuca; para isso, utilizaria a pistola do pai, um policial aposentado.
Enterraria o sujeito numa vala. Para isso, cavaria uma cova no meio de uma área de reserva florestal. Ele já tinha preparado a cama do pobre coitado que estava com Camila.
Comprou sacos de cal virgem e uma formulação biológica altamente concentrada, concebida à base de culturas de microrganismos, para que a decomposição do corpo do miserável fosse a mais rápida possível. Depois de livrar-se da pedra em seu caminho, iria para a próxima etapa do plano: Camila.
Arquitetou que, no momento de maior dor, por ter perdido o maldito namorado, ele se aproximaria dela. Lhe forneceria palavras de consolo e conforto; a moça estaria receptiva, fragilizada e muito vulnerável. Levaria Camila para a cama, plantaria em seu ventre um filho; a partir daí, ela seria apenas dele.
Se a menina o rechaçasse, sua tentativa pacífica de acalento e aconchego seria c***l. Tomaria à força o fruto entre suas pernas e depositaria suas sementes dentro do seu ventre. Cobriria a jovem com as mais vis ameaças. O alvo seria seu irmão caçula e o progenitor, por quem Camila demonstra muito afeto.
Coagida, ela cederia a ele o sexo forçado e muito mais. Seria implacável, consumiria sua carne, dando-lhe jatos encorpados dos seus gozos. Logo, uma criança estaria crescendo dentro do ventre fresco da moça. Seria o passo derradeiro para tornar Camila a sua senhora.
Marcelo não era um bom rapaz; apenas vestia a roupagem de moço do bem, mas sua essência era maligna. Quando criança, tentou matar a irmã afogada, utilizando o talco para isso. Dona Lourdes, sua avó, quase teve uma síncope ao deparar-se com a cena do menino despejando o pó perfumado sobre o rosto da pequena Mi.
Não foi só isso que o rapaz aprontou em sua tenra infância. Aos oito anos, ele pegou o cachorrinho da família, um animal de porte pequeno, e jogou-o pela janela do segundo andar da casa onde morava com os pais. Indagado pelos progenitores sobre qual motivo fez isso com o bichinho de estimação, disse que queria saber o que o cãozinho iria sentir ao cair. O bichinho morreu; não resistiu às múltiplas fraturas.
Varuna sorriu e saboreou o momento em que viu o espanto na face do desavorado.
— Queria saber quem sou, não? Es-me aqui! — proferiu o espectro, voltando o seu corpo na direção do rapaz.
Marcelo agiu rápido, puxou o revólver do pai e disparou três vezes contra Varuna. O fantasma fez uma cena como se realmente tivesse sido afetado pelos tiros, contorceu-se e dobrou o seu corpo. Parecia que sofria uma dor carnal aguda.
Fingiu agonizar e depois perder os sentidos, para em seguida erguer a cabeça, ostentando um sorriso enorme, quase maluco e muito, muito psicopata.
— Acha mesmo que pode retirar a menina de mim? Acredita mesmo que vai ter o coração da minha garota? — indagou Varuna, acionando o motor do carro e fazendo o pedal da embreagem afundar; o câmbio mexeu sozinho, engatando a primeira marcha.
Marcelo entrou em desespero; a máquina tinha ganhado vida, operava sozinha, sem a ajuda de ações humanas.
_ Que p***a é você? Seu filho da p**a do c*****o!- berrou o jovem enquanto tentava controlar o volante.
_ Sou o namorado da garota que cobiçaste. Sou aquele que, no seu íntimo, jurou de morte, mas que, para o seu azar, já está morto - proferiu Varuna, sentando-se preguiçosamente no banco. Sabe, quando eu tinha a sua idade, gostava da adrenalina, queria senti-la correndo em minhas veias; por isso, gostava de correr perigos. A velocidade era um dos alimentos dessa minha insana necessidade - revelou e fez o carro acelerar na via deserta.
Varuna fazia o carro disparar no asfalto para depois provocar, de forma voluntária, o movimento brusco de derrapagem que leva o veículo a deslizar lateralmente numa trajetória giratória, como se fosse um pião.
Marcelo berrou, sentindo a sua alma escorregando pelos pés.
_ Para com isso, p***a! Para agora, seu maldito desgraçado! - berrou, ensandecido o garoto apavorado.
Varuna gargalhava para, depois, ficar sério e repetir tudo outra vez. Um pobre senhor que vinha andando em sua bicicleta velha na beira do asfalto caiu dentro dos matos, assustado com a velocidade com que o veículo vinha em sua direção. Escondido dentro do capim, depois de proferir uma dúzia de palavrões, ficou prestando atenção no desenrolar da cena, julgando ser um doido ou um bêbado que pilotava o carro de cor vermelha.
Cansado da brincadeira, Varuna pulou no colo de Marcelo e sugou seu ectoplasma, que saiu em volumes pela boca do jovem, cheio de arrojos coroados de valentia. Depois, lançou-se para fora do veículo e esperou pelo desfecho r**m.
O carro saiu da pista, capotou várias vezes e parou de rodas para cima. As ferragens ficaram completamente retorcidas. Acompanhou o momento em que o espírito do jovem rapaz saiu da sucata e correu desesperado para a pista. Não tardou para ser levado pelos espíritos trevosos que possuíam seus olhos mais escarlates que as brasas de um fogaréu.
"Em breve, chegará a sua vez, Varuna..." - ouviu o sussurrar macabro e apenas deu-lhe as costas.
Varuna aprendeu que, depois que perdemos a matéria, dois grupos de resgates vinham para "resgatar" o que sobrou. No caso, o espírito iria com a colônia das trevas ou da luz. As das trevas não te davam escolha alguma; você é capturado e integrado ao grande grupo, enquanto os da luz não te obrigam; a escolha é sua se aceita partir ou não.
Varuna deixou de rememorar fatos antigos para puxar Camila pela mão. Adentram ao quarto, os dois em silêncio.