Abril de 2024.
( Alguns dias depois...)
Penso que, se tivesse que comparar Camila com alguma flor, seria com aquelas que nascem nos campos, no meio da vegetação. Essas flores simplórias que são vulgarmente chamadas de mato, aquelas pequenas de tonalidades azuladas ou lilases. Considero que a moça de grande simplicidade se assemelhe muito a essas pequenas que pontilham o colorido por entre o abundante verde. São essas pequenas cores que destacam a peculiar florada da espécie, muitas vezes ignorada. É nas suas delicadas e singelas flores que está mostrada sua diferença.
De certo modo, a jovem dona de lindos cabelos castanhos desabrochava nos detalhes, não de beleza ou de inteligência, não que estes lhe fizessem falta, muito pelo contrário. Ela abria-se na singeleza, na inocência de menina e nos olhares desprovidos de malícia.
Um coração puro no meio do caos, Varuna pensava desta forma, sentia desse modo e para ele não havia outro. Conviveu com corvos e cobras, sabiamente conseguia separá-las e até enumerá-las, foi criado para isso, foi instruído para perceber os mínimos detalhes. O espectro sentiu o seu peito arder, lembrar a sua vida carnal sempre lhe fazia sentir essa queimação.
O fractal micaélico andava solitário pela sua fazenda, vendo a terra procriar seus belos frutos. Tinha que ser justo, os Esteves cuidavam bem do seu pedaço de paraíso.
Ah! Os Esteves trouxeram sem saber o melhor dos presentes para esse sombrio espírito, trouxeram Camila para sua "vida" espiritual. Lhes era grato por isso.
O fantasma parou numa árvore que tinha o tronco forrado por orquídeas das mais variadas espécies, contemplou a obra, contemplou os botões dos pendões.
Sua existência solitária se baseava em contemplar, não tinha ninguém para conversar, para desabafar, contar sobre sua vida carnal, sobre sua raiva e ódio. Não tinha ninguém para falar de coisas bonitas, para falar sobre a sobrinha, Verena, sobre Camila. Não tinha ninguém para contar que estava amando, apaixonado, pela primeira vez, querendo uma mulher com todas as forças que continha dentro de si, seja só energia ou o ectoplasma, substrato que lhe permitia aparecer para vivos.
Muitas vezes se esquecia do som de sua própria voz, esquecia do seu rosto, da cor dos seus olhos e isso o lançava na mais profunda tristeza. Tocou na folha de uma das orquídeas. Deixou o local para ir ver sua amada, tinha saudades, uma doida saudade e queria saná-la.
A jovem trançava seus fios, dedos finos por entre as mechas separadas e o olhar perfurando o ar, pensava no homem que viu em pé, iluminado pelo foco da lâmpada do poste, pensava na voz que ouviu, então lembrou-se de que viu um rosto perto do seu.
O reflexo na água! - murmurou, arrematando o seu trabalho com um laço de fita da cor amarela.
Ergueu-se e sentiu uma brisa leve passar atrás de suas costas, como se uma pessoa tivesse adentrado ao seu quarto. Olhou por cima do seu ombro e não viu ninguém. Riu sozinha.
_Quem poderia entrar se a porta está fechada. - sussurrou para ninguém, mas tinha alguém ali, ela apenas não conseguia vê-lo.
Varuna admirou o seu bem-amado. Camila estava semelhante a um raio de sol, vestida com um vestido salpicado de margaridas de miolos muito amarelos e uma fita da mesma cor na ponta de uma elaborada trança.
"Eu sou a lama e você é a minha flor" - sussurrou o morto apaixonado.
A moça escutou mais uma vez o chiado enjoado que parecia se expandir dentro do seu canal auditivo.
Camila amadureceu uma ideia estúpida na cabeça, cabeça de borboleta, como sua irmã Tabata dizia que a garota possuía. Essa ideia, corrigindo, desejo, esse desejo cresceu absurdamente nos últimos dias; ela retornaria ao lago, pensou que poderia ser o fantasma que viu na rua que estava a falar com ela. A curiosidade lhe gritava no fundo da alma.
Saiu sem fazer barulho, era fim de tarde. O pai, como de costume, estava preso na estufa com a filha mais velha, ambos trabalhando em novas espécies. Sabia que Tabata odiava isso, no entanto, a sua linda irmã não queria estudar, não queria fazer uma faculdade e por pura pressão foi obrigada a aprender o ofício do pai.
Alda tinha ido à cidade com Júnior, o moleque implicante precisava de roupas novas, cresceu para cima e para os lados, nada mais lhe servia. Sobrou em casa apenas Camila.
Varuna acompanhou a jovem, intrigado com o que ela iria fazer, não lhe ocorria nada.
A moça abriu a última gaveta da cômoda, passou a mão na bolsa de pano e desceu apressada a escada, torcendo para não encontrar ninguém e ter que dar algum tipo de explicação. Célere, saiu no quintal, montou na velha bicicleta, partiu.
Chegando perto do lago, Camila jogou a bicicleta no chão e andou, temerosa e vacilante, até a borda, onde caiu. Viu, na outra margem, os seus sapatos que deixou para trás no momento em que fugiu.
Os olhos da garota voltara-se em direção à mata pequena e não ouviram um mínimo barulho.
Seu coração batucava mais do que o tambor de uma escola de samba. Tomou uma generosa lufada de ar, embebendo-se do arrojo forcejado . Precisava ficar em paz com sua mente e consigo mesma.
_ Oi, senhor fantasma. E... eu voltei. Sei que saí daqui desesperada da última vez, fiquei com medo. - falou, empalidecendo, mas quem não perderia a cor numa conjuntura nada natural dessas?
Varuna apenas escutava tudo com calma.
_ Meu pai disse que era alguém que estava na mata e me pregou uma peça. Pode ser! Mas eu vi alguém na rua, vi um rosto, além do meu, no reflexo da água do lago. Então lembrei de quando eu morava no Rio de Janeiro e uma amiga me contou sobre uma história e... bom, eu não posso negar uma ajuda para ninguém, se estamos aqui é para poder ajudar, estender a mão. - proferiu, abrindo a bolsa e retirou de dentro algumas velas e uma caixa de fósforos.
Camila acendeu-as, ajoelhou-se e fez uma oração na intenção da alma que fez contato com ela.
Varuna sentiu um alívio enorme, sentiu-se encher de paz e emoção. Ninguém, nem mesmo sua família, fizera algo assim . Ele caiu no esquecimento de muitos, inclusive daqueles que lhe chamavam de amigo, das damas que se diziam apaixonadas e enamoradas por ele. Era tudo falso, uma vida falsa, uma existência grotesca.
Camila terminou suas preces e ergueu-se. Olhou para os lados e nada viu ou ouviu, manteve a calma. Então, foi surpreendida ao sentir que alguém parou ao seu lado direito. Os pelos do seu corpo eriçaram, todos eles. Sentia a presença, sentia que a energia era outra. Tentou mover as pernas para fugir como da última vez e não conseguiu.
De repente, em sua mão, um deslizar de frio por sua pele fez com que derrubasse algumas lágrimas, por medo, sim, quem não teria? Mas sentia outro tipo de sensação que não se equiparava ao pavor. Sentia o estômago gelar, um frio gostoso que jamais provou.
"_P...por favor, e...eu...estou com medo", disse num fio de voz, e a sensação de ter um cubo de gelo lhe tocando a pele cessou.
Foi a deixa para Camila correr, pegar a bicicleta e disparar apressada para casa, esquecendo até a sacolinha, sem sequer olhar para trás. Se olhasse, o veria perto dos presentes que ela deu a ele, o veria olhando em sua direção, veria a mágoa e a felicidade brincando nos olhos do espírito.
Ela não olhou e ele não deixou de acompanhá-la com seu olhar cuidadoso, olhar de quem ama, de quem quer guardar dentro de si a espécie rara que o universo trouxe para a redoma de vidro que o cerca.
Varuna olhou para as chamas amareladas das velas, olhou para sua mão, ainda estava nela o contato com a pele macia e quente da menina, as pontas dos seus dedos formigavam em êxtase.
"Ela me sentiu, sentiu minha presença, meu toque." - sussurrou para si mesmo.
O espectro olhou para o céu, naquela noite que chegava depois de muitas que se foram, era rara, viu despontar as primeiras estrelas. Olhou para a água do lago que refletia o veludo notuno limpo, sem nuvens.
Ao longe viu uma estrela cadente caindo, fechou os olhos e fez um pedido: pediu Camila.
Encheu-se de amor, pensava em ir e velar seu sono, pensava em fazer conexão com sua alma e entrar em seus sonhos, queria dançar com a pequena, assim como muitas vezes acompanhou a jovem com o seu pai, queria dar-lhe o primeiro beijo, mesmo que numa terra distante onde tudo não passa de um mero teatro.
Quando as chamas das velas apagaram-se por todas terem chegado ao fim, Varuna caminhou para a casa que resguardava o seu tesouro.