Camila adormeceu e Varuna estava esperando por isso, esperando pelo momento em que pudesse beijá-la em sonho.
Ocorreu o desdobramento e, com a parte fractal dela, ele conseguiu o tão sonhado momento. De uma forma diferente, o primeiro beijo dela era seu, não como ele obviamente queria, se pudesse tudo seria muito diferente.
Se estivesse no mundo dos vivos, levaria sua garota a um belo restaurante, jantariam ao ar livre tendo o teto estrelado como testemunha, em alguma área descoberta, com flores e velas acesas para aumentar o encanto que o momento pediria.
Jantariam os dois entre olhares que absorvem cada pequeno detalhe; em seguida, ele retiraria a bela dama para dançar, não uma dança qualquer, mas aquela que precede o beijo. Falaria ao pé do ouvido da sua amada da grandeza dos sentimentos por ela, falaria de como se sentiria tendo o corpo dela próximo do seu, mencionaria o cheiro dos seus fios e da sua pele; não deixaria de salientar nada. Naquela noite, ele teve certeza disso, não tendo mais o tempo que tinha, a casca que abrigava o seu espírito. Varuna deu-se conta há muito que perdeu bastante, que calou-se em momentos que deveria falar, não se impôs quando deveria ter sido como o aço forjado; ele arrependia-se muitíssimo, no entanto, o tempo não retrocede como às muitas etapas de um vídeo que temos o pleno poder de retornar para certas partes.
Sabia que seu tempo entre os carnais não mais voltaria, não mais se restituirá, nada iria devolver-lhe o que tinha, acabou, virou pó, cinzas levadas pelo vento. Restou apenas um espectro fantasmagórico que vaga em busca de vingança, em sua concepção, todos os envolvidos tinham que receber suas sanções, por suas próprias "mãos" invisíveis. Contava apenas consigo mesmo para ir à caça, contava apenas com os sentimentos ruins que o envenenaram após acordar do outro lado, só não esperava pelo surgimento dos Esteves e que com estes, surgisse alguém para lhe trazer tão fortes sensações e sentimentos que nunca provou, nem em vida e muito menos em morte: Camila.
Para Varuna, tudo era muito real, mas nada normal. Fugia dos padrões aquele amor funesto, cuja estrutura é frágil e cheia de mistério, ele morto, ela viva, uma ligação que ninguém pode explicar e, se pode, guardou o segredo, a explicação, dentro de um cofre no mais profundo dos oceanos.
O espectro tocou na face espiritual da sua amada que o olhava com curiosidade, ele entorpeceu os sentidos que sua alma jovem não sabia como bloquear, aproximou seus lábios dos dela e tudo ocorreu, profundo, sugando-o de uma forma que o deixou vencido. Ele queria dizer muitas coisas, mas o beijo por si só era uma confissão inteira, rebuscada no mais fino e delicado papel.
Não demorou o tanto que o fantasma queria, foi curto, mas foi tudo, como viver e renascer mil vezes dentro do que pode ser contado como minutos, poucos minutos.
Ela se foi, retornando ao seu templo e ele, mais envolvido do que nunca pela atmosfera de um sentimento que é mais forte que a morte, ficou por ali, naquele espaço quadrado, vigilante, de uma certa forma, cuidando de sua amada.
Varuna achou o beijo dela doce, meigo e despretensioso. Tocou seus lábios, fazendo memórias, criando um espaço único e somente para Camila.
_ Minha Camila. - proferiu, olhando para o corpo embolado nas cobertas. A madrugada era fria e sua presença esfriava ainda mais o lugar. Não era proposital; ele era o denominado espírito perdido, vagante, e a multidão de sentimentos ruins que continha abrigados em si tornava-o uma alma fria.
Varuna aproximou-se da cama, arrumando as camadas de tecidos sobre o pequeno corpo. Sentiu o cheiro de baunilha, sentiu a energia da jovem. Estar perto dela lhe trazia sossego, a sensação de estar num jardim cheio de cores, sem realmente estar.
Quando Camila acordou, recordava vividamente e requintadamente do sonho. Sentou, seus olhos piscando várias vezes, enquanto repassava tudo, cada pequeno detalhe, tocou seus lábios. O coração da moça estava acelerado, muito célere. Sentia o estômago gelado e o farfalhar de asas das muitas borboletas que alçaram voo dentro da sua barriga.
Rememorava o rosto do homem que beijou em sonho, um homem bonito, dono de olhos azuis, como se o mar estivesse dentro das belas gemas, cabelo de um loiro escuro e pontas mais claras, pele branca e o cheiro do perfume.
Camila assustou-se, lembrando do perfume, do cheiro, a essência. Pulou da cama, levou as mãos à cabeça. Seus olhos ficaram parados, mirando o chão, a garota fazia uma ligação entre dois acontecimentos: o odor de perfume que invadiu seu quarto sem ter uma explicação e o cheiro que sentiu emanar do homem que beijou no sonho.
_ Não pode ser! - exclamou aturdida.
Com muitos pensamentos na cabeça, a moça andou de um lado para o outro dentro do quarto, tremia tanto que se alguém visse o seu estado, teria dó, pena da pobre criatura.
Talvez Camila não tenha pensado muito, apenas agido por puro impulso, pela emoção e pelo rompante de valentia do momento; abriu o guarda-roupa, agarrou o primeiro casaco que viu e deixou o quarto às pressas.
Era pouco mais das seis horas daquela manhã, quando a menina pegou a bicicleta cacarecada e partiu rumo ao lago; na cabeça dela, o espírito ficava naquele local, nem sabia a garota que ele vagava por muitos lugares dentro e fora do plano material.
Camila chegou esbaforida na parte da fazenda que tinha por objetivo, saltou da bicicleta, olhou em volta e só uma bruma espessa fazia as honras, como se fosse a cena de um filme macabro.
_ Você esteve nos meus sonhos! Como pode? - berrou, querendo explicações.
Não sentiu ou obteve uma resposta, nem mesmo um sinal de que era ouvida.
_ Você está me assombrando! Me assustando! Droga! O que quer de mim?! - vociferou, tomada pelo nervosismo.
Mais uma vez, o silêncio foi tudo o que teve. Não por estar exatamente sozinha, Varuna estava por perto. Acompanhava o descompensar da moça. Contudo, ele achou por bem se abster de alguma manifestação, pois nas três últimas vezes, Camila por muito pouco não teve uma síncope.
- Não vai me responder! Aparece, seu covarde! Covarde é isso o que você é! Um fantasma que se esgueira pelos cantos, como uma sombra do que um dia você foi! - gritou a plenos pulmões, unhas cravadas nas palmas das mãos, cabelos desgrenhados e o casaco dele vestindo o corpo dela.
O espectro tentou ser comedido, queria usar de parcimônia em suas manifestações, trazer de uma forma não traumática, Camila para o seu campo, não que ele quisesse o desencarne da jovem, trazê-la ao seu mundo. Mas era por muito o desejo de compartilhar com ela do que sente por sua pessoa, ela o tinha vencido há tempos e ele simplesmente se entregou, sem voltas ou desistência.
Um vento forte soprou, sacudindo as roupas e o cabelo da menina. Era um sopro frio, cortante, muito gelado. A jovem apertou os braços em torno de si. Ergueu o olhar e viu um homem surgir no meio do nevoeiro. Seus olhos arregalaram, ela travou por inteiro, não conseguia mexer um músculo. O sujeito caminhou em sua direção, cada vez se aproximando mais. Seus passos não faziam barulho ao esmagar o mato, seu rosto tinha uma expressão grave e séria.
Camila reconheceu imediatamente, era o mesmo que veio em seus sonhos. Ela não conseguiu desviar o olhar, estava presa na imagem, no acontecimento.
Varuna parou perto da menina, sua estatura superior à da pequena jovem o fez inclinar a cabeça para poder olhar o seu rosto.
A garota olhou muito espantada para o homem em sua frente, um homem muito lindo, o homem dos seus sonhos.
Por um breve momento trocaram olhares, a imagem da moça foi espelhada nas íris cor de mar e a imagem de Varuna refletiu nas órbitas amedrontadas da menina.
_ É.... voc.....você .....- disse antes de perder os sentidos.
O amparo veio através de braços espectrais, mais uma vez ele não deixou o corpo da moça ser acolhido pelo chão. Gostava desse contato de poder ter para si o calor vindo dela. Eram afagos sigilosos que, sem saber, partiam da jovem para o morto apaixonado.
"Sabe o que eu quero, Camila? Quero você e o seu amor, quero as suas ternuras e os seus mais singelos gestos. Quero tudo, tudo que vem de ti", respondeu, olhando para o corpo inerte em seu abraço frágil espectral.