Varuna queria falar sobre seus sentimentos embora não soubesse como.
Quando vivo, seu coração nunca procurou por amores, nunca ansiou pelo mel da paixão.
O espectro tinha encontrado um lar, esse lar tinha nome, corpo e os olhos mais meigos que os seus puderam contemplaram. Seu regaço de quietude, de paz e conforto se chamava Camila.
Ele deseja ver-se espelhado nos lindos olhos de cor escura, desejava ter dela o supra sumo do que jamais teve de mulher alguma.
Jamais recebeu sentimentos verdadeiros, e se alguma cultivava isso por ele, nunca percebeu. Estava ocupado demais sendo o filho perfeito parada o pai. Traçando caminhos dentro da política do pais, sendo treinado e lapidado.
_ Sente-se melhor?- a menina perguntou afastando-se.
_ Sim, obrigado.- repsondeu o fantasma; e como não estaria? Tinha sido aquecido pelo calor do corpo físico dela, tinha sentido a suavidade da sua pele sedosa e o cheirinho agridoce do seu suor.
_ Não chore. Chorar não faz bem, lágrimas são espinhos que a alma coloca para fora.- falou a doce Camila, olhando para o espírito.
A jovem não tinha conhecimento de que o espectro atormentado, o que mais tinha era espinhos cravados em seu corpo imaterial.
Camila não atreveu-se a comentar sobre a beleza do fractal, suas maçãs coraram.
_ Vai retornar para o campo?- indagou ele com seus olhos presos nela.
_ Sim, as sementes de girassóis me aguardam.- disse erguendo-se.
O fantasma deu uma boa olhada ao redor, remontou em sua mente astral como aquele quarto era antes de sua partida.
_ Gosta desse quarto como está? Por que não o reformou? - indagou, sumindo de onde estava e reaparecendo do outro lado da cama, sentado sobre o colchão.
_ Aqui tem história, gosto de saber que essas paredes sabem mais do que eu e qualquer outra pessoa. Se a água tem memória, porque outros objetos não teriam. Veja,- apontou o dedo indicador para o local que fazia menção - naquela parede tem a marca de uma bola, parece ser de basquete, devia estar molhada e marcou a pintura. Fico imagiando quem fez, como era e o motivo para jogar bola aqui dentro com tanto espaço lá fora.- explicou com um sorriso suave no olhar.
O Fantasma sabia desse detalhe peculiar que poucos têm conhecimento; sim, a água não tem só memória, tem consciência. Quando criança, Varuna fazia experimentos. O espectro rememorou saudosamente aquela época em que sua alma não tinha sido corrompida, época em que era puro e desprovido de malícias. Tinha por volta dos seus oito anos de idade, Varuna desenhava figuras no papel e depois pegava um vidro com fundo transparente e colocava uma quantidade mínima de água, depositava o vidro em cima do desenho e aguardava por cerca de trinta segundos, depois colocava o pote no freezer. Quando a água sofria o processo de solidificação, lá estava o desenho congelado, esculpido e sendo exibido pelo gelo ou o seu reflexo.
Isso é possível porque a água muda sua estrutura dependendo das vibrações com as quais entra em contato. Certa vez, Varuna tentou fazer esse experimento trocando as figuras por palavras. Tentou uma em específico: esquizofrenia. Ouvindo seu pai referir-se à mãe com esse termo, o menino ficou sem entender. Depois que a água solidificou, não apareceu a palavra em si, mas o desenho de uma pessoa com duas faces.
Então, isso levantou uma questão muito significativa para o pequeno Rockefeller: a inteligência da água.
Anos mais tarde, em posse da sua maior idade, ao beber qualquer bebida que vinha impresso no rótulo a palavra " monster ou Death"( monstro/ morte), recordava-se dessa parte em específico da sua infância, mas adultos são assim esquecem facilmente esquecem ou não dão a devida importância para alguns conceitos, ignorando-os totalmente.
Naquele dia, o espectro lembrou-se de que, melhor dizendo, fora lembrado e, em seu âmago, questionava-se se ele teria atraído a energia da morte para o seu corpo, uma vez que bebeu água cristalizada com a vibração da morte impressa, fazendo isso incontáveis vezes. Preencheu setenta por cento do seu corpo, que é composto por água, com a vibração da morte.
O fantasma perdeu-se nessas indagações por algum tempo, recriminando-se.
_ É incrível como não sabemos nada ou pouco sabemos.- A moça proferiu com seu olhar espetado no nada, pensava em algo.
Varuna apenas teve a confirmação que estrugia dentro de si, no seu íntimo todas as vezes que admirava a rara beleza da moça.
A jovem nem fazia idéia que a marca era dele e sim, foi feita com uma bola de basquete. Todas as vezes que estava irritado ou cheio de problemas Varuna ficava batendo a bola na parede, era uma maneira de espantar o nervosismo, de outra forma recorria a meios ilícitos; esses meios nada legais lhe faziam relaxar era uma baforada e a fumaça cantando no ar, os nervos retornando ao lugar e a cuca ia ficando cada vez mais fresca.
Guardou para si sobre as marcas e muito mais não era o momento de falar-lhe sobre.
_ Gosta daqui? Da fazenda, de Holambra?- indagou, querendo saber mais sobre o seu bem-querer, querendo mais dela, tudo dela.
_ Sim!- respondeu a menina sorrindo- moravamos no Rio de Janeiro, mas lá está muito violento. E quem não deseja calmaria, não é?- respondeu sem fazer objeções ou semblantes tácitos.
O espírito teve a percepção que Camila é uma jovem fácil de manter um diálogo, ela era aberta, falava sem cerimônia. Contava sobre uma fase do passado da sua família, de modo aprazível .
_ Preciso retornar ao trabalho.- avisou a jovem, espiando pela janela do quarto o exterior da propriedade.
Os olhos dela procuraram por ele e os dele não desviaram dela.
_ Nos vemos depois.- ele proferiu e sumiu na frente dela. - Camila teve um sobressalto, esquecia que ele não fazia parte do seu mundo.
Respirou fundo, sentia o cheiro dele em suas roupas e não entendia como algo assim era possível.
Não era do conhecimento da bela moça que o espírito fazia essa "mágica" de evaporar na sua frente, como se fosse uma nuvem de fumaça, propositalmente, para que a menina fosse se acostumando e perdendo os medos e receios.
No fundo, Camila sentia-se feliz. Tinha amparado aquela alma sofrida e melancólica. Acreditava estar fazendo o correto, acreditava que tinha feito um amigo do outro lado da linha que divide o plano material do espiritual. Por mais que isso, por vezes, a deixasse assombrada, despertava-lhe uma curiosidade profunda. Quem era ele? Onde viveu? Onde morreu? De que morreu? Quem é sua família? Tinha uma esposa e filhos que ficaram aqui, dando continuidade à sua jornada? E por qual razão ele se foi, sendo muito jovem? Doença? Essas indagações despertavam a inquietação na jovem.
Digo que Camila andava em uma linha tortuosa, nem ela mesma sabia onde estava entrando, nem ela tinha consciência que não era saudável esse tipo de relação coroada pelo impossível.
Não deve, assim como não deveria, existir essa mesclagem entre os mundos. Seja baseada na amizade ou em relacionamentos mais profundos; desfruta-se enquanto está respirando, ceifou-se a existência é ponto final irremediável. Mas alguém esqueceu de avisar isso para o sentimento que denomina-se amor. Ah, o amor, esse sentimento que ninguém nunca viu ou ouviu, esse sentimento que ninguém conseguiu inocular, mas que está presente no DNA humano.
Nessa louca teia da vida creio que este sentimento, o amor, esteve presente desde os inícios do universo.
O amor não é simples nem do ponto de vista sociocultural, nem científico. Então é de se esperar que sua relação com a genética vá além do MHC.
Até esse ponto a ciência tem suas explicações, mas e quando não é o material que ama? Todos esses estudos e comprovações são nulas, caem por chão .
O enamorado da vez é um morto, um espírito que não possui corpo, apenas energia. Como encontrar explicação para tal?
Normalmente, só pode amar quem tem um coração, um corpo. Para que assim desencadei o processo de reações químicas que responde os porquês desse sentimento.
Mas Varuna não tem corpo, não tem coração e ama, sente esse sol interior que condensa e reúne em seu ardente foco todas as aspirações e desejos. Não estamos falando do amor lei divina, amor virtude e sim do amor particular, aquele que é seu, que te coloca para flutuar sem tirar os pés do chão, que te faz dormir e acordar com saudades daquela pessoa. Cuja o qual só a breve menção do nome faz tudo dentro de ti aquecer; aquele que por alguma razão deixou de existir, mas o seu íntimo não esqueceu, porque marcou de forma diferente e incontestável. Existem vários amores, uma pessoa pode amar diversas vezes, mas existe aquele amor, aquele que é secreto que só você e sua alma saberão até o findar dos seus dias.
Varuna não tinha mais dias para findar, porém tinha consciência e era uma alma, não tivera muitos amores, sequer paixões; agora tinha Camila, ela marcou sua essência, por mais que ele estivesse parado no tempo, ainda tinha os seus vinte e oito anos.
O espectro foi até a Anick, acompanhou de longe a irmã cuidar da sua sobrinha. Amava demais Anick, queria poder contar para ela sobre Camila, queria poder externar a grandeza do que lhe aconteceu, entretanto não podia.
Anick, aninhava sua pequena, lembrava do irmão, lágrimas rolavam por seu rosto.
" Ele iria ter adorado te conhecer."- pensou sofrendo, coração em frangalhos, tinha sonhado com ele, acordou com saudades, mas não tinha forças para ir ao cemitério. Detestava saber onde o seu amado irmão foi parar, dentro de uma esquife, apodrecendo.
Verena dormia, calma, sem percepção nenhuma do estado de melancolia da mãe. Recebeu o conforto do berço e por lá ficou.
Anick sabia que data era aquela, ela nunca esqueceu aquele maldito número que foi o divisor da sua vida, uma parte tendo seu irmão ao seu lado e a outra a falta que sente dele. Anos se passaram, mas a dor não, perguntava-se sempre como ele estaria se estivesse vivo. Ela sorriu tristemente.
" Com muitos filhos, com certeza."- pensou indo até uma gaveta, pegou um álbum de fotografias e sentou-se na cama, suas mãos tremiam, sempre era assim.
Abriu a capa de veludo azul com as iniciais bordadas em dourado V. R.
Começou a folhea-lo, Varuna aproximou-se e sentou-se ao seu lado. Ele não tinha conhecimento que depois da sua partida, sua irmão recolheu todas as fotos que tinha dele pela casa e mandou confecccionar um álbum, o seu tesouro inestimável.
Anick chorava e via cada foto demoradamente, tocava a face bonita do irmão, mirava seus olhos azuis expressivos e mais lágrimas derrubava. Tinha saudade daqueles olhos, de como ficavam lindos quando ele sorria, tinha saudade do abraço dele de ouvir a sua voz.
A mulher, preenchida pelas recordações nostálgicas, retirou uma foto do plástico protetor, deslizou a ponta do indicador sobre a imagem, deu um beijo e apertou contra o peito.
Varuna acompanhava cada pequeno momento, via a expressão de dor e saudade no semblante de Anick, queria acolher a irmã em um abraço, não podia. Tentou por muitas vezes uma comunicação com a irmã, nunca conseguiu. Quem sentia sua presença, isso raramente, era Anice, sua mãe.
"Estou aqui, não chore mais", proferiu o espectro, vendo o peso da dor em sua irmã; no entanto, ela não podia ouvi-lo e o seu momento de chuvas de desespero continuou.
Não existe uma máquina para retornar no tempo e se tem, essa está bem escondida, deixando os reles mortais se viram e revirarem com seus problemas e dores.
" Olha só o que restou de você, meu irmão, poucas lembranças. "- Anick puxou para fora do suéter o escapulario que mandou fazer; eram dois, idênticos, um para Varuna e outro para ela. Na frente tinha um diamante e atrás as placas. No de Anick tinha a imagem de um santo e no do irmão a placa tinha a dinvidade indiana: Varuna.
O espectro olhou para a joia presente na mão da irmã, não sabia nem que santo era, não tinha nenhuma religiosidade, ia às missas aos domingos por conta de mostrar-se aos demais que os Rockefeller eram (como ainda são, porque ainda existe essa família) uma família padrão e religiosa.
Ninguém tinha conhecimento das sujeiras por trás de tanta aparência de família perfeita.
Varuna tocou no escapulario que carreagava consigo.
" Eu não te esqueci, minha irmã...não te esqueci"- repetiu tocando nas costas de Anick.
O espectro acompanhou a mulher guardar o álbum e deitar-se na cama, olhos vidrados no ar, muitas recordações percorrendo sua mente e a vontade de retornar ao passado, falar mais vezes que o amava, o abraçar mais e sentir o seu cheirinho de irmão caçula.
Anick lastimou-se, nunca mais teria isso, essa oportunidade. Ficou com o que sobrou e com a vontade de dar aquele beijo.