Varuna não conseguiu persuadir e fazer com que a jovem Camila declinasse do passeio. Por isso, companhou o jovem casal, seu intuito era atrapalhar tudo, deixar evidências concretas e claras de que Marcelo não era para a garota que teria roubado seu coração se ele, ainda, possuísse um.
O espectro estava pior do que um homem encarnado, possuído por ciúmes, revoltado com a trajetória do seu póstumo amor, da sua paixão póstuma.
Considerava-se um miserável, amaldiçoado, um fractal que não era merecedor de nada.
Em vida, quando ainda possuía sua casca, seu pensamento não diferenciava muito do que tinha, naquele tempo, dentro de sua alma. Considerava-se um desgraçado, em vida, por fazer parte de uma família frívola, de sociopatas; tendo progenitores egoístas que só visavam o melhor para si. No final de tudo, quem pagou caro foi ele, pagou pelos caminhos e passos dos demais, pagou por nascer no meio da corja, por se cobrir com a sujeira e fazer desta sua manto.
O que fazer quando descobre que a sua outra metade tem vida e pulsa mais do que toda a natureza? O que fazer quando só tem conhecimento disso depois de estar morto? O que fazer? Varuna não sabia e eu até hoje não encontrei respostas para essas perguntas.
Como segurar a chama que queima depois da morte da matéria? Como lidar com os espinhos que brotam no microcosmo de um fantasma apaixonado, enomorado e cheio de dor? Está nestas boas indagações que estamos vivendo em paralelo com o que não conhecemos.
Varuna acompanhava de perto a moto acelerando pelo asfalto, Camila encostada nas costas do Marcelo, por puro medo. A doce jovem não tinha antes andado nesse veículo. Confrangeu o corpo espiritual do espectro, sentiu-se despedaçando-se, era a sua menina provando do calor do corpo de outro, calor que ele não podia oferecer, não tinha uma casca há muito um, muito menos calor.
Deste modo, sob a vigilância constante do fantasma, os jovens chegaram na sorveteria. Camila estava em êxtase, não queria demonstrar empolgação, não queria evidenciar às claras que tinha muito interesse no moreno que fazia suas mãos ficarem geladas. A jovem retirou o capacete e arrumou os fios, fez um movimento suave de balançar a cabeça. O cabelo transpassou Varuna, que sentiu o cheiro de baunilha que vinha dele, aroma adocicado bastante agradável, envolvente, intenso e, ao mesmo tempo, relaxante.O aroma da essência trouxe uma sensação de positividade e de alguma forma, uma sensação de familiaridade. Varuna sentiu como se o aroma estivesse abraçando-o e acolhendo-o.
Piscou seus olhos espectrais, sua boca fantasmagórica abriu-se levemente, ficou hipnotizado olhando a dona do aroma, da essência que lhe deu novas e boas sensações. Sentiu o sentimento que tinha por ela medrar de modo muito assaz.
Uma linha vermelha que somente ele podia ver vibrou, essa linha os conectou, e quando isso ocorreu foi como ter fogo o consumindo. Varuna ofegou baixinho, Camila olhou para perto de si, com o cenho franzido, ele percebeu que a garota escutou seu sussurro de leve, porém que continha tudo que permeava o seu corpo transparente.
_ Então, alguma vez andou de moto ou é a primeira vez? - Marcelo aproximou-se galante.
_ Primeira vez, mas não gostei. Acho muito perigoso, no Rio de Janeiro acontecem mortes horríveis com condutores, atropelamentos e, nas brigas de trânsito, são perseguidos intencionalmente. Muitos condutores perdem suas vidas, uma tristeza. - relatou a jovem, olhando para Marcelo.
O rapaz sorriu, achou adorável a forma como ela se expressou, cheia de empatia.
_ Pode deixar que no próximo passeio não irei de moto. - falou, piscando um olho e dando um sorriso.
O rapaz pegou na mão da jovem moça e sentiu um choque percorrer-lhe o corpo.
Sobressaltou-se assustado, olhou para Camila e sorriu, mas agora com pura descrença do que acabara de acontecer.
A menina o olhou, não entendia a reação estranha de Marcelo. Este, por sua vez, coçou a sobrancelha e lhe deu um olhar de esguelha, ponderou se revelaria o ocorrido. Concluiu que melhor seria não levar ao conhecimento da pequena, poderia soar grosseiro, não queria a garota magoada.
_ Vamos entrar, tem preferência por sabores? - perguntou, uma forma de sepultar o que ocorrera.
_ Não tenho preferência. - respondeu Camila, adentrando ao estabelecimento.
_ Escolha um lugar, enquanto eu faço os pedidos. - Marcelo sugeriu e a menina apenas afirmou com um balançar de cabeça, sentou perto da parede. Varuna ficou próximo, escorado nela, observando a jovem.
Não houve uma demora significativa para Marcelo juntar-se à mesa.
Gentilmente, o rapaz entregou uma casquinha para a bela dama, bolas de morango e chocolate enfeitavam o cone de biscoito.
Espero ter acertado. - o jovem disse com um sorriso nos lábios.
Camila retribuiu, apertando seus olhos. Varuna ficou encolerizado, aproximou-se da mesa e tomou um dos assentos. O fantasma olhou de modo taciturno, porém profundo para a menina.
_ Claro que sim! Obrigada! - proferiu a jovem com um pouco de efusividade.
_ Pretende fazer o que quando terminar os estudos? - indagou o rapaz, não que tivesse interesse, mas precisava manter um diálogo para depois chegar ao ponto principal do passeio: provar da frugalidade da doce Camila.
_ Não sei, talvez uma faculdade, talvez eu apenas cuide da fazenda com meu pai. - disse, dispensando a pequena colher frágil e abocanhando o sorvete, sua atitude inócua deu margem para pensamentos libidinosos na cabeça de Marcelo. Varuna sentiu a vibração s****l do seu rival, sentiu e não gostou, jamais permitiria que outro tocasse no que considerava seu.
Levou sua mão até o joelho do jovem e apertou. Marcelo levou um susto com a súbita dor. Pareciam ter pregos entrando em sua carne, perfurando-a. Ficou incomodado, tentou disfarçar o desconforto, mas Camila percebeu. Somente por educação não indagou coisa alguma.
Marcelo tentou emendar as conversas, mas não conseguia concentrar-se em nada. Resolveu erguer-se, poderia ser um m*l jeito nos ossos. E acreditou que sim. Ao levantar-se, a sensação de estar com algo espetando seu joelho extinguiu-se.
_ Aceita caminhar um pouco? - perguntou o jovem.
_ Sim. - respondeu Camila, meio trêmula, sabia que o momento tão aguardado aproximava-se.
Os dois saíram da sorveteria, levando seus doces gelados nas mãos.
A cada passo que davam pela calçada, recebendo o vento frio da noite que chegava aos poucos, tinham em seu encalço um morto apaixonado.
_ Sabe, eu acho você a menina mais bonita da classe, também é a mais inteligente. - disse Marcelo, terminando de mastigar a casquinha crocante.
_ Obrigada, mas não concordo. Aline é a mais bonita e a Danny a mais inteligente, os trabalhos da garota são insuperáveis. - disse com um sorriso brincando em sua face.
Estava aí um ponto que Varuna concordava com Marcelo, para ele Camila era única, inigualável.
_ Não seja modesta, Mila. A maioria dos meninos são loucos para se aproximar de você, só não fazem porque... sei lá, falta coragem da parte deles. - revelou, passando o braço por cima dos ombros da menina. Esperou pelo choque que não veio, ficou aliviado o moço de pele morena e cabelos enrolados.
O pequeno corpo da menina sofreu um espasmo involuntário.
_ Sério? Não acredito! - falou surpresa.
_ Acho que foi por causa da invenção maluca do Everaldo. - Marcelo não queria ter concorrente, sem saber que já tinha, um bem diferente, mas tinha. O jovem decidiu revelar para Camila algo que rondava entre os alunos, só que em murmúrios pelos corredores.
_ Everaldo? O que ele está falando de mim? - indagou curiosa e preocupada.
Marcelo olhou para a menina, um olhar de quem não sabe qual seria a reação da jovem depois de ter conhecimento da fofoca.
_ Ele disse para alguns alunos que você tem um obsessor. - soltou, voltando o seu olhar para frente.
Os passos de Camila cessaram, a menina olhou para Marcelo e soltou uma risada estridente.
O rapaz ficou pasmo olhando a reação da garota, em seus pensamentos pensou que a menina ficaria possuída de raiva.
_ Obsessor? - inquiriu ela.
_ É... sabe aqueles que morreram e ficam atrás de alguém por alguma razão. - explicou totalmente desconcertado.
_ Eu sei o que é, Marcelo. Um fantasma! - falou, enxugando os cantos dos olhos.
_ Você sabe, Everaldo é evangélico e diz que vê essas coisas. Deus me livre, cruz credo. - proferiu, fazendo o sinal da cruz.
_ Pensei que somente o meu irmão fantasiava com filmes com essa temática. Pelo que percebo, estou muito enganada. Fantasma não existe, morreu, acabou! O que um espírito iria querer no meio de tanta imundície carnal? Quando morremos, nossa parte pura retorna para o Criador. Simples! - a jovem lembrou-se de uma passagem na vida de sua família e resolveu relatar - Esse tipo de pensamento não é bom. Digo isso porque, certa vez, quando éramos crianças, meu irmão e eu vivíamos implicando um com o outro. Então, com raiva, ele decidiu ir no meu quarto, aprontar alguma coisa e disse que viu as folhas do meu caderno, que estavam em cima da minha escrivaninha, passando sozinhas, folheando. Disparou pelo corredor correndo e gritando, assustando-nos e quase aconteceu algo mais grave. Acredita que, por causa do desespero, ele caiu e torceu o tornozelo? - falou, terminando de degustar o doce gelado- Depois de algum tempo ele confessou isso somente para mim; meus pais nunca souberam disso, para o senhor Evaristo e dona Alda, foi um morcego que assistou o meu irmão.- completou dando de ombros.
_ Caramba, Mila, que perigo, hein! - Exclamou o rapaz, prestando atenção na pequena.
_ Muito! Meus pais ficaram desesperados. Hoje ele insiste que tem um fantasma dentro do meu quarto, não entra lá por nada. Só que era apenas o vento, levantando as folhas, a janela não estava fechada direito. - proferiu sem saber que naquela noite, Varuna abriu propositalmente a fresta nas bandeiras da janela, ele viu Júnior e consequentemente, acompanhou o desfecho r**m.
_ Pessoas fantasiam, isso é fato. Acredito que isso seja apenas produto da imaginação fértil e nada mais. Se não fosse assim, não teríamos bons livros e bons filmes. - Marcelo exprimiu.
_ Certamente! As pessoas acreditam no que querem e muitos usam isso para benefício próprio. - a menina, expôs o seu ponto de vista.
_ É, mas muitos acreditaram em Everaldo, exceto eu, por isso que tirei a sorte grande, fiquei com a menina mais bonita da escola. - falou, parando e puxando Camila para um abraço.
A jovem gostou do abraço quentinho. Aprovou o calor misturado ao cheiro gostoso que emanava do corpo do rapaz e sorriu feliz.
Ao se afastar, Camila, tomada pela alegria e emoção de estar com o garoto que seus olhos contemplaram por muito tempo, resolveu estupidamente desafiar Varuna.
_ Aparece, fantaaassssmmmmaaaa!!! Eu estou aqui! Pode vir!!! - gritou, colocando as mãos nos cantos da boca em formato de concha para ampliar o som. Em seguida, riu, riu muito, desdenhando da credibilidade da visão de Everaldo, da existência de um ser sobrenatural em seu encalço, da possibilidade da existência de um espírito caminhando entre os vivos. Considerou tudo ilógico e irracional.
Varuna viu-se ferido por aquela que mais estimava, viu-se magoado e, acima de tudo, irritado com a falta de respeito e de empatia. Sim, empatia. Ninguém sabe o que um espírito está sentindo ao perder seu sopro de vida, seu templo carnal.
Marcelo aproveitou o momento para aproximar-se da garota, tocou em seu rosto e, em seguida, deslizou o polegar pelos lábios desenhados.
_ Você é linda, garota, e mexe muito comigo - proferiu o jovem afetado por ter a menina em seus braços.
Camila, por sua vez, ficou imersa no momento, as palavras não vinham à boca para retribuir o elogio.
O rapaz inclinou o tronco, a fim de se aproximar dos lábios da menina. Camila não conseguiu fechar os olhos, queria ver, eternizar aquele quadro da sua vida na memória, seu primeiro beijo.
Contudo, antes das bocas conseguirem se unir, Camila viu um homem alto, vestido todo de preto, surgir embaixo do foco de iluminação da lâmpada de um posto e olhar na direção deles, em seguida, sumiu bem na frente de seus olhos.
Assustada, a garota soltou um grito alto, que fez Marcelo recuar.
_ O que foi?! - perguntou, tomado de espanto.
A moça tinha os olhos do tamanho dos pires de xícaras, olhava sem piscar na direção de onde a assombração apareceu e desapareceu. Sem querer acreditar no que seus olhos observaram, caminhou apressada até o local. Marcelo seguiu a menina sem entender nada, apenas estranhando o comportamento da jovem.
Camila procurou ao seu redor, olhou para o alto e depois para o chão. Não existia vestígio nenhum, olhou para Marcelo e levou as mãos ao cabelo prendendo-os atrás das orelhas.
_ Tinha alguém aqui, estava nos olhando! - falou com a voz trêmula.
Marcelo cruzou os braços e olhou para a garota com descrença.
_ Não estou brincando, eu vi, Marcelo. Vi um homem aqui, mas de repente ele... sumiu... - a frase foi morrendo no final, como se ela mesma não estivesse acreditando no que dizia.
_Sumiu, né? - disse ele, levantando rapidamente as sobrancelhas; seu tom de voz era de quem não acreditou nas palavras que ouviu.
_ Sim! Aqui! Bem aqui! Ele estava aqui! - afirmava ela nervosa.
_ Acho melhor irmos embora. - proferiu o rapaz, tomando para si que a atitude da menina foi simplesmente por não querer receber o beijo.
_ Como assim, embora? - indagou ela, franzindo as sobrancelhas.
_ Embora, está um pouco tarde. - desconversou, não querendo ser arrogante e truculento ao expor o que verdadeiramente se passava por sua cabeça.
_ E o beijo? Não vou ganhar um? - Camila disse sem vergonha alguma.
Marcelo riu com a falta de escrúpulos, com os modos afoitos da menina.
_ Se você quer, eu dou. - respondeu manso, com uma sensação gostosa brincando em seu interior.
Camila aproximou-se e esticou os braços envolvendo o pescoço do rapaz, ele fez o mesmo com ela, infiltrando seus dedos pelos fios sedosos.
Os lábios dos dois resvalaram, um lampejo de quentura faiscou nos corpos de ambos.
A intenção do casal trouxe um amargor indizível para Varuna. O espectro queria estar ali, no lugar do rapaz, queria que fosse dele todas as primeiras vezes dela, todas. Movido de um sentimento tão forte quanto o amor, porém sendo bem o oposto, segurou firme no cabelo da moça e deu um puxão.
Camila afastou a boca bem no momento em que Marcelo iria iniciar o beijo de língua, o beijo que seria o primeiro degrau nessa escalada para fazer da bela garota sua namorada.
_ Por que puxou o meu cabelo? - perguntou a menina, olhando com receio para o garoto. Sabia sobre relacionamentos abusivos e que tudo começava com pequenas coisas e logo evoluía para algo maior e mais devastador.
Marcelo estranhou a pergunta, afinal, ele não faria algo desse tipo, ainda mais tendo pretensões futuras envolvendo a moça em seus braços.
_ Não fiz isso. Não seria capaz, Mila. - respondeu, olhando-a com seriedade.
Camila olhou nos olhos escuros do moço , buscando por mentiras ou pilhéria, mas não encontrou nada.
Os lábios se tocaram novamente, leves, reconhecendo-se, e um gemido de dor vindo do menino fez Camila se afastar, assustada.
Marcelo dirigiu um olhar chateado para a jovem.
_ Você puxou meu cabelo! O que é isso, hã? Uma vingancinha boba, infantil, porque eu não acreditei que você fingiu ver a merda de um fantasma? Inventou que puxei seu cabelo para ter um pretexto de fazer isso comigo! Sinceramente, você é decepcionante! Perdi meu tempo! - bradou irritado. Diante da expressão do jovem, Camila tremeu, desapontada com a falta de compostura e delicadeza do rapaz.
Frustração inavdiu cada pequena porção da matéria que constituía o corpo da moça.
_Quero ir para casa - pediu em baixa voz, não tinha mais encanto para estar ali na companhia daquela pessoa. Marcelo destruiu sua ilusão de beijo inesquecível e encontro perfeito.
- Vamos! - respondeu rudemente, caminhando na frente e deixando a menina sozinha.
Camila não sabia o que sentia, mas a vontade de chorar foi crescendo pelo caminho de volta para casa. O peito estava apertado, esmagado pelas palavras que feriam mais do que brasas na pele.