Primeiro dia útil de Maio de 2024.
Camila ainda não entendia bem por qual motivo foi escolhida por um espectro para servir como uma voz e ouvidos amigos, para servir como uma espécie de consolação ou algo do tipo.
Ninguém ouve de uma pessoa que ela tem um amigo fantasma, ninguém ouve de alguém que tem um vínculo com alguém que atravessou para outro plano. Acredito que muito nos separa, são planos distintos e bem discrepantes, locais em que somos encapsulados quanto matéria ou quanto fractal. Não era para existir uma interação, um contato, nada, absolutamente nada, mas parece que as duas linhas paralelas, não são retas, uma linha cruza várias e várias vezes com a outra e ocorre uma mistura entre o abstrato e o concreto.
E essa mescla fazia a jovem moça ponderar se não seria o momento de falar abertamente com alguém sobre os ocorridos. Pensou muito, mas só conseguiu pensar no colega evangélico chamado Everaldo. Enquanto a garota pensava em como relatar tudo sem parecer uma insana, sentiu um vento frio passar atrás de suas costas e o cheiro dele.
_ Você está aqui, posso te sentir - falou, terminando de vestir uma blusa de frio.
_ Sim, estou aqui - o fantasma proferiu, sentando-se na poltrona e passou a observar seu objeto de desejo.
_ Tenho aula, retornarei só mais tarde. Vai vir me ver? - a jovem perguntou, arrumando os fios num r**o de cavalo bagunçado.
O espectro ficou fitando a menina por vários ângulos enquanto ela se sentava para colocar as meias nos pés.
_ Você deseja que eu compareça? - o fractal micaélico queria ter noção do quanto a moça tinha agradado-se de sua aparência.
Pela mente espectral do fantasma passava apenas que se ele fosse de carne e osso, não precisaria procrastinar para dizer o que realmente deseja da garota: o seu amor.
O medo atinge muitas camadas, não só dos seres materiais, mas também dos seres espirituais. O fantasma descobriu isso ao abrir a boca para confessar o que sente, não sabe como, mas sente. Por pura prudência, calou-se, não poderia afastá-la, em sua concepção, Camila poderia se afugentar. Quem em sã consciência iria aceitar o amor de um morto? Ninguém, porém a amizade foi vista pelo espírito como um bom início e nessa fraca esperança agarrou-se.
Varuna esperava pela resposta como se dela dependesse sua existência abstrata.
Seu olhar sagaz não desviou, não titubeou, fixou-se na moça.
Camila parou com seus movimentos, ergueu um pouco a cabeça, talvez pensasse no motivo de tal indagação, talvez ponderasse sobre uma resposta; ela retornou a colocar as meias e ergueu-se.
_ Se isso vai te fazer bem, então, a minha resposta é sim. - disse olhando em torno do quarto, contudo, nada podia ver, somente o habitual.
Se o fractal ainda tivesse um coração, o dele estaria aos sacodes retumbantes dentro da caixa torácica. Ele não entendia o motivo de uma menina simples, sem luxo, de beleza comum, o encantar tanto. Como mencionei, Camila é comparada a aquelas flores singelas que nascem nos campos. Dona de um encanto que ninguém soube ou saberia explicar, por em palavras.
_ Droga! Não gostei dessa calça, está folgada na cintura, acho que emagreci! - reclamou a pequena, olhando para a veste jeans - Amigo fantasma, seja sincero, por favor! Estou bonita? - perguntou com um sorriso nos lábios.
Varuna sentiu-se especial, ela o procurava para saber sua opinião sobre algo que, em sua concepção, ela sempre estava: linda!
_ Você está bonita, Camila. - a menina ruborizou até o branco dos olhos.
_ Você é gentil. - disse em um tom baixo de voz - Pode me dizer o seu nome? Você tem um, né? Ou quando morremos mudam os nossos nomes? - perguntou afogueada. Quando resolveu fazer a pergunta sobre estar ou não bonita, não esperava reciprocidade, mas teve e isso fez sua face queimar como se tivesse colocado o rosto muito perto de um fogão à lenha.
_ - Mais tarde posso lhe contar - respondeu o espectro, sorrindo. Ele queria poder tocar em sua face e sentir a temperatura de sua pele. Varuna gostou de vê-la tingir sua face, ficou com um ar mais inocente, além do que, por natureza, possuia.
Durante o período vespertino, o fractal ficou longe da menina, andou pela fazenda, passeou por entre as rosas e outras flores. Gostava do perfume delas. Depois, foi até a casa dos pais, era uma visita para a sua mãe que estava numa depressão. Uma grande tristeza acometeu sua progenitora depois da sua passagem. Ele por muitas vezes ficou ao lado do seu leito repetindo: "Eu estou bem, mãe, não se preocupe."
Fato é que Varuna não estava nada bem, ele não seguiu em frente, não aceitou de bom grado a perda do sopro vital, muito pelo contrário, "vive" perseguindo seus algozes, aqueles que por sorte ou ironia do destino ainda conseguem escapar de suas ciladas. Sim, ciladas mortais, nem sempre é o d***o que pratica tais artifícios.
No aposento da mãe, o fantasma contornou a cama e sentou-se ao lado da enferma. Cariciou-lhe os cabelos, ela dormia, expressão de cansaço e desolamento tomava-lhe a face.
O filho lhe deu um beijo, cheio de ternura, amava sua progenitora, não queria deixá-la, tinha, quando em vida, que cuidaria da mãe, assim como ela sempre cuidou dele. E essa missão tomou para si depois que sua casca se foi.
De repente, os olhos azuis da senhora Rockefeller abriram-se e seu semblante foi tomado por surpresa e depois espanto.
_ Filho! - vociferou a mulher, fazendo força para sentar no colchão.
Varuna acompanhou a irmã entrar pela porta, sobressaltada.
_ O que houve, mamãe? - Anick perguntou aflita, olhos inquietos passeavam pelo corpo e rosto da progenitora.
_ Seu irmão, minha filha! Ele esteve aqui! Aqui! Me deu um beijo, eu senti... senti o cheiro dele, daquele perfume que sempre usava! Varuna! Varuna! Meu amor, eu te amo tanto, perdoa a mamãe, meu filho, por eu não ter podido te proteger! Me perdoa! - a mulher berrou, angustiada, choro vertia dos seus olhos.
Foi demais para o fantasma, ele sentia tudo vibrar em sua volta, uma dor aguda alastrou-se por sua linha espectral. Lançou-se contra uma parede e desapareceu, não suportou.
Retornou para o cemitério onde chorou ajoelhado perto de sua esquife, derramou-se em arrependimento por ter saído naquele nebuloso dia, por não ter sido mais forte e aguentado a asfixia quase mecânica que sentia por conta da pressão psicológica.
Era tarde, muito tarde, não tinha retorno, não tinha como consertar os erros, como retornar pelo caminho que percorreu. Viu-se perdido, s*******o de como agir, partiu à procura daquela que era o seu epicentro de paz, sua fonte de calmaria: Camila.
Talvez ele precisasse de um afago feito por uma palavra amiga, como por exemplo: "tudo vai ficar bem". Uma lorota das piores, nada fica bem quando tudo já perdeu o ponto certo.
O fantasma chegou na escola da jovem e não houve paz, somente mais tormentos; Camila conversava sozinha num canto com um rapaz, o espectro foi de triste para raivoso em segundos. Deu um grito alto, os encarnados não ouviram, mas um vento forte começou do nada, levantando poeira e sacudindo os cabelos das meninas que andavam despreocupadas no pátio.
Como tudo que está péssimo pode piorar, alguma coisa obstruiu a visão da jovem Camila que, ao tentar sair do lugar, esbarrou em um rapaz que, por sua vez, tentava passar no meio dos alunos que corriam desesperados para entrar em suas salas; caiu por cima deste. Os lábios de ambos encostaram-se, Varuna explodiu, sua aura ficou densa, n***a, e ele não mais dominava o seu sentir.
Lançou-se com tudo contra o rapaz, penetrando em seu corpo. O jovem começou a sentir dores, conforme o espectro usurpava algo que não lhe pertencia, um fenômeno conhecido como poltergeist, começou a ocorrer. Lixeiras saíram do lugar, portas bateram sozinhas, folhas foram arrancadas dos murais; todos atribuíram isso ao vento repentino, porém era bem mais que isso.
Os fenômenos dão-se pela colisão de energias, isso faz com que ela transmute e mexa de alguma forma com outras, alterando o equilíbrio.
_ Ai, está doendo! - gritou o rapaz, e a menina entrou em desespero, acreditando ter machucado severamente o jovem.
_ Meu Deus! Machuquei você, onde? - perguntou nervosa.
_ Está doendo muito, parece que tem mãos apertando-me por dentro! - berrou o garoto, e logo inspetores estavam por perto para socorrer o não-enfermo.
De algum lugar, bem longe, o aluno que podia ver os dois "mundos", fazia várias vezes suas orações. Ele acompanhava com nitidez Varuna despejar sua raiva no corpo do colega. Olhou para Camila e soube a razão: o obsessor era dela. Ninguém pode tocar em uma pessoa que tenha um obsessor tão forte e de aura escura.