Primeiro contato de carinho.

1776 Words
08 de maio de 2024. Se estava escrito em algum lugar, só o criador de todas as coisas sabe, fora ele ninguém mais. Se somos classificados e separados quanto encarnados ou não, seres viventes ou não viventes; então por qual razão é permitido esse cruzamento entre os dois mundos? Se o possível não pode tocar o impossível, então por qual motivo existem essas conexões absurdas e surpreendentes? Não consigo entender, por mais que eu busque uma razão plausível, uma explicação que sane com todos esses porquês, eu não encontro. Era uma ironia de suas existência? Sendo cada uma vivida em campos diferentes? Não sei. Apenas afirmo que existe sofrimento no tal plano espiritual. Varuna sofria na data de cada mês (número) em que foi liquidado; ele sentia dor, sua vulnerabilidade era tamanha. Muitas vezes passava essa data vagando pelo cemitério, esperando que algum familiar fosse visitá-lo. Não queria flores nem velas, queria apenas ser lembrado. Que eles fossem no seu jazigo, sua nova morada. Mas, por anos, ninguém veio, e o corpo dele foi sendo consumido, tornando-se pó, e nenhum dos poderosos Rockefeller pisou nas terras que guardam os mortos. O que sentia, raramente, eram as orações por parte da mãe e da irmã. Muitas vezes o choro das duas o perturbava, causava-lhe agonia e dor lancinante. Estava na semana da fatídica data. Ele não queria ir ao cemitério, por isso decidiu isolar-se. Foi para o galpão onde a moto destruída estava guardada. Levantou a lona e viu o monte de ferros sendo carcomidos pelo tempo. Sentou-se no chão bem ao lado do pneu traseiro que estava murcho, abraçou as pernas e esperou pela aflição e dor do momento. Tudo transbordou em sua mente, cada pequena etapa do dia do seu falecimento. Chorou, gritou de desespero e não foi ouvido. Era sempre o mesmo, nas mesmas datas. Só que diferente das demais datas funestas, ele ouviu o sussurrar da voz da moça chamar seu nome. Expremeu-se contra o cavalo mecânico, não queria comparecer na frente de Camila encontrando-se naquele estado lamentável. Varuna era só um borrão n***o e nada mais. Em Holambra, precisamente na fazenda Bella Flor, Camila preparava-se para subir no trator, iria ajudar a arar a terra, prepará-la para receber uma plantação de girassóis. A garota estranhou não sentir o cheiro e nem a presença do espirito, por mais que ainda não percebesse, sentiu a falta dele. Pensou onde ele estaria e para onde ia quando sumia. A moça tomou a direção da máquina e começou a fazer o seu trabalho. Evaristo estava de longe, acompanhando o desempenho da sua menina. Sentia um orgulho tremendo da filha, com ela não tinha tempo r**m, sempre prestativa e desenvolta. De repente, lá longe o trator parou e Evaristo ficou preocupado, chamou Camila pelo rádio. A filha não respondeu, tentou mais duas vezes e foi só então que obteve resposta. _ Desculpa pai, parei para prender o cabelo.- mentiu, ela parou porque viu Varuna e seu olhar de tristeza arrebentou com seu peito, tentou falar com o espectro, mas este sumiu bem na frente de suas vistas. Camila ficou perdida, queria poder ajudar aquela alma. Só que ficou com a indagação flutuando pelo ar: Como é que ajuda uma alma? Sem saber a resposta, fez o que todos fazem : orar. Por mais que tentasse esquecer o semblante sofrido do fantasma, não conseguia. Resolveu agir por extinto, seguindo o que seu coração pedia para que fizesse. A moça terminou de trabalhar a terra e guardou o trator. Evaristo foi receber a sua pequena. _ Você foi rápida, minha filha! - disse sorrindo. _ Tenho algo para fazer, pai, antes de ir para a escola.- disse, saltando da máquina. _ Gosto dessa sua responsabilidade. - falou o progenitor, dando uma abraço lateral na jovem. Camila, na grande realidade, não tinha nada para fazer, sequer uma tarefa básica da escola. A menina queria era ir para o seu quarto, ficar sozinha e ver se o espectro estava por lá. A menina disparou apressada pelo caminho estreito, até chegar em casa. Subiu a escada correndo, trancou-se. "Pronto, agora aparece que eu preciso saber o que é que você tem!" - sussurrou. "Para quê? Nada vai reverter a situação." - ouviu a voz dele, estava cabisbaixo. "Falar faz bem, desabafa comigo. Não foi por isso que você de alguma forma escolheu-me." - proferiu aos sussurros. Varuna estava encostado na porta do guarda-roupas, sentado no chão, cabeça apoiada nos joelhos e o choro descendo sem parar. A moça não o via. " Estou ouvindo o seu choro, estou sentindo o seu desespero, não faz isso, não sofre sozinho, eu estou aqui. Não somos amigos? Amigos é para tempos bons e ruins."- tentou persuadi-lo a doce menina. " Não há tempos diferentes para mim. Você não entende! É tudo frio, sem cor, sem sabor, sem .....Vida!"- disse o espectro. " É tão r**m assim o outro lado? Desculpas eu não sabia, na verdade não sei nada sobre essa sua condição. E por falar nisso, obrigada pela rosa."- sua voz morna e gentil, fez Varuna erguer seu olhar para Camila. " Se contenta com tão pouco . Por quê?- indagou o espectro. " Não me contento com pouco, me contento com a intensidade de sentimentos que vem implícito no presente, é isso que conta ao meu ver. Não vejo valor monetários, vejo valores reais, aqueles que realmente precisam ser notados."- explicou e o espírito, não cansava de ser surpreendido pela menina que estava usando um vestidinho azul, cheio de margaridas estampadas. " Você é diferente menina."- disse o espectro , vendo uma luz índigo em torno do corpo pequeno da moça " Não sou diferente, as pessoas é que andam muito estranhas, invertendo os valores e tratando objetos como pessoas e pessoas como objetos." - proferiu, enquanto olhava em volta do quarto. Varuna calou-se. Camila tinha toda razão. Realmente, há muito tempo a consideração e o amor entre os seres humanos vinha esfriando. Ele percebeu isso, mas estava preso numa cela invisível e não podia ser hipócrita. Provou dessa frieza, usando-a contra os outros. " Vamos, quero saber onde você está! - pediu a jovem e o fractal surgiu, sentado no chão. A moça viu e de primeiro momento levou um susto, quase caiu sentada na cama. " Ainda tem medo do que sou."- afirmou o fantasma. " Vai passar, irei acostumar com sua presença. "' - falou, olhando-o inquieta- Posso sentar perto de você?- pediu, respirando fundo. " Pode."- a resposta curta fez com que a menina pensasse se estava fazendo a coisa certa. Contudo, não o via como uma assombração e sim como alguém que precisava de ajuda. A jovem sentou, arrumando a saia do vestido, tinha receio de mostrar suas partes revestida pela calcinha de algodão estampada de corações coloridos. " O que aconteceu? " - indagou sem saber por onde começar e resolveu ir pelo que considerou ser o início . Varuna olhou para a menina sentada à sua frente. " Hoje não é uma boa data para mim, desperta certas tristezas."- murmurou ou espetro. O espectro não sabia dizer como sabia que era a data em que faleceu, não sabia como seu perispírito, o envoltório fluídico, sentia as mesmas sensações que sentiu ao desencanar. Parecia que era uma maldição. " Nossa, eu nem sei o que.... quer um abraço?- perguntou a menina, mesmo estando com o medo lhe puxando pelos pés. Varuna olhou fixo no rosto da garota. Era notório o medo, notório o modo como suas mãos tremiam levemente. " Por qual motivo quer abraçar-me se está exalando pavor por todos os seus poros?- indagou. " Não sei o que dizer para lhe trazer algum conforto, posso fazer m*l uso das palavras e lhe trazer mais consternação. Mas um abraço vale mais do que mil palavras, fala no silêncio tudo que o outro precisa."- Varuna ficou encantado com a sutileza que a jovem usava para expressar-se. " Você me daria um abraço? "- indagou querendo, mais do que tudo, poder sentir sua menina bem de pertinho. Sempre era ele a tocar a bela moça e nunca o oposto. Perguntava-se, em seu íntimo, como seria ter as leves e delicadas mãos sobre seu corpo imaterial. " Claro, porque não? "- respondeu Camila- Eu só estou um pouco suada, estava trabalhando e o sol hoje está de "fritar ovo no asfalto". - completou meio sem graça. " Não preocupe-se, você cheira bem."- respondeu o fantasma e a menina sorriu, um sorriso franco, sincero e carregado de timidez. O espírito sentiu o ardor que os enamorados sentem. Camila aproximou-se devagar, tinha medo de abraçar a alma penada e ir de cara com o guarda-roupas. Ganharia um enorme hematoma no osso da testa. Ela o olhava com um pouco de receio, e ele mirava sua menina, cheio de expectativa . O enlace de carinho foi sendo construido devagar, os dois titubeando nos gestos; ela por ser uma experiência nova e ele sendo consumido pela paixão. O coração dela disparou indo parar na garganta e a energia etérica dele circulou velozmente no seu corpo astral. Os braços dos dois foram levemente erguidos, os membros superiores cruzaram-se um nas costas do outro. Aos poucos, Camila foi descendo sua mão e arrepiou-se inteira, inclusive os cabelos da nuca. Varuna sentiu um bem estar gigantesco, as palmas das mãos de ambos, encostaram um no corpo do outro. " Eu sinto você! Eu sinto você....sinto você! " -Camila proferiu tomada por uma emoção muito grande, abrasadora e vivida. Varuna deslizou sua mão pelas costas delgada da menina e sentiu a textura dos seus fios castanhos. " Eu... seu...seu aroma....é um sonho."- sussurrou, por que ele sabia que aquele encontro de toques estava além do natural, além do compreensível. " Me diz: O que você sente?"- indagou ela apoiando a sua cabeça no ombro dele. " Seu calor, sua energia e é maravilhoso."- respondeu. Se alguém abrisse a porta veria uma cena muito esquisita, a jovem de joelhos abraçando o nada, abraçando o ar, numa posição muito estranha. " Você não precisa sofrer sozinho, se quiser estarei aqui para te ouvir e dar abraços quentinhos."- Camila proferiu, não sentia mais arrepios frios, sentia apenas o coração pulsando normal sendo impulsionado pela ternura do presente momento. A bela jovem, não entendia como podia sentir o toque do tecido em seu rosto, ver com perfeição os fios de cabelo do Varuna, presos em seu couro cabeludo; reparou no cordão que ele usava, brilhante. A menina não entendi, porém sentiu que estava bem acolhida dentro daquele contato de carinho. E isso era só o que era importante para Camila, naquele momento.
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