(Noite de segunda-feira)
Varuna andava pela fazenda, dando gritos de puro ódio. Pensava ele que Camila não o amava, mas sim brincava com seus sentimentos.
A verdade dos fatos é que ele nunca amou nenhuma mulher e, agora, depois de morto, conheceu esse sentimento. Varuna tinha medo de ser abandonado, esquecido pela jovem; pensava em sua condição: apenas um fantasma, o espólio do que sobrou da sua vida.
Camila tinha se entregado para ele, por mais que não conseguisse deflorar a garota da forma que era seu mais íntimo desejo. Apenas sentiu a energia do momento e o calor do corpo dela. Prazer não teve, não chegou ao orgasmo; descobriu da pior maneira que espectros não sentem o clímax do momento de volúpia.
Mesmo assim, o sentimento que tinha pela moça cresceu, triplicou. Ela, tão doce e subserviente na cama, nos momentos em que ele podia exercer total domínio sobre ela.
" Ah! Camila, minha Camila, se soubesse há quanto tempo eu te quero; se soubesse que te amo baixinho nessas minhas noites lúgubres. Nesses momentos em que ardo e urjo do apanágio da calidez dos teus sorrisos. Ai, de mim, pobre avejão; mostro-me apaixonado, perdido nas reentrâncias da escuridão e rutilância. Profundissimamente enamorado pelos teus olhares fúlgidos, moldados nos mais perfeitos bem-quereres. Tu tens de mim o que nem eu mesmo tenho, porque tudo que sou venera você. Murmurava o fantasma, andando desconsolado por sentir amor; por amar sem saber ter controle; por ter muito dentro de si e saber que pouco pode externar.
Parou debaixo de magueira frondosa, rescostou no largo tronco e ficou admirando o céu escuro, sem lua e muito menos estrelas.
Varuna chorou; pranteou a vida que teve e a existência que tinha. No âmago sentiu a dor lancinante; pouco mudou, era um monstro.
Olhou na direção que um vulto branco que se aproximava, com uma lanterna de foco medíocre mirando em seu rosto.
_ Por que fugiu de mim?- a voz dela chegou, jogando o fractal para o alto. Como se fosse um carro desgovernado atropelando pessoas.
Sim, Varuna sentia-se estraçalhado por esses múltiplos sentimentos que carregava em seu corpo etérico.
_ O que faz aqui? É tarde.- respondeu seco, com outra pergunta. Sequer lançou um olhar furtivo para Camila.
A moça sentiu a distância que o fantasma impunha entre os dois.
_ Não consigo dormir. - proferiu a jovem parando perto do espectro.
Varuna emudeceu, tinha vontade de abraça-la, mas seu orgulho não permetia.
Muitas vezes, em nossas vidas, perdemos chances de sermos felizes por conta do orgulho bobo. Ele estava em posse do seu, que era mais sólido do que um bloco maciço de aço.
Percebendo que o espectro não iria dizer nada, seu semblante fechado era mais que prova disso.
— Não gosto de brigas, Varuna. Se está insatisfeito com algo, sente-se junto comigo e converse; exponha o que não te agrada que eu farei o mesmo. Existe muita coisa r**m no mundo para acrescentarmos algumas doses de negatividade. Quero estar em paz em todas as questões, inclusive no amor — disse Camila.
A sabedoria e a sensatez da moça era admirável; resplandecia o quanto era segura do que queria para si ou agregar em sua vida.
Desta vez, Varuna olhou para a garota do mato. A menina usava um pijama branco de mangas longas e calças compridas.
Comparou Camila com as suas primas Valéria e Viviane que pensavam o oposto; segundo as gêmeas Rockefeller, a briga apimenta qualquer relação é o equilíbrio. Uma pitada do tempero que deixa a vida mais quente e ardente. Ambas as mulheres, eram sarcásticas ao extremo, além de frívolas.
_ Não quero conversar Camila, não estou no meu melhor momento. Me deixe só. - pediu tentando distanciar-se.
_ Por que? A minha presença te incomoda? - indagou a moça, ansiando por um pouco de carinho.
Varuna apertou os olhos e o maxilar com força, pecebeu o tom de desapontamento presente na voz dela.
_ Por Deus! Camila! Olha para mim, menina! Eu não sou para você! Não sou nada; pior sou a pura escuridão, um ser putrido mergulhado na tormenta! Me esquece! Só....me esquece!- gritou , depois de pensar bem sobre os dois. Ela tão pura e cheia de bons sentimentos e pensamentos; ele sempre errado, persistindo nos erros e cheio de maus sentimentos.
Camila olhou devastada para o amor da sua vida: olhos arregalados, lágrimas descendo, e a lanterna caiu de sua mão, assim como sentia o amor escapar entre os seus dedos.
_ Nunca me amou? É isso...- perguntou num sussurro sofrido.
O fantasma não aguentou, voltou seu corpo de encontro ao dela, abraçou a menina e recostou o pequeno corpo contra o tronco largo.
Chorava abraçado ao seu anjo encarnado; dedos espectrais infiltrados nos cabelos macios e cheirosos da bela jovem, e o aperto firme daquele abraço só evidenciou para a garota o quanto confuso e perdido Varuna estava.
Ouvir dos lábios de quem se ama que acabou é como ter uma bomba atômica sendo detonada dentro de si; tudo vai morrendo, minguando, e não se tem onde agarrar quando a propagação do ar em encorpados alos te atinge. Camila sentiu todo o impacto e devastação.
— Como não te amar? Como? Se a todo tempo quero te abraçar forte! Como não te amar? Quando tudo que mais preciso e temo perder é você! Como? Me diz como? Se tudo de mim grita por você, minha menina! — a voz dele saiu sofrida, chorosa e angustiada.
Varuna travava uma guerra consigo mesmo; sabia da lápide fria que os separava, sabia das impossibilidades desse relacionamento e sentimento; temia que um dia ela seguisse sem ele, temia que o coração macio e de ouro da sua amada fosse retirado das duas mãos e entregue a outro. Ele não poderia sair ceifando a vida de todos os homens que se aproximassem da moça. Não poderia se auto-intitular o anjo da morte. Já tinha transcendido os limites.
_ Para de fazer conjecturas só fica comigo. O amanhã não pertence a ninguém, eu considero que só tenho o hoje e estamos desperdiçando com essa rusga.- A menina proferiu esfregando o nariz no tórax do fantasma.
Varuna deu um beijo no topo da cabeça de sua adorável dama.
_ O que você faz aqui na terra? Seu lugar é junto com os anjos, linda menina.- proferiu bêbado de amor, entorpecido pelo calor do corpo dela.
Camila ergueu o rosto na direção do seu amado; coração descompassado.
_ Se tu me ama; retira de mim qualquer pedaço que me desfaça; Torna-me parte de ti, refaça-me; amar é fazer morada um no outro e eu não quero ser despejada do teu " coração ". - recitou a menina e Varuna foi aos seus pés de joelhos na terra, implorando por seu perdão.
Antes, tinha dúvidas se aquela linda moça só tinha olhos para ele; naqueles instantes em que estava beijando os seus pés, teve certeza.
_ Perdoa esse pobre desgraçado que nunca provou do que tem agora; perdoe esse miserável que passou pela vida sem ser salvo por um coração digno; perdoa esse fractal de alma que peca por amar o inatingível: você. - falou, olhando dentro dos olhos da garota que soltava o ar devagarinho pelos lábios entre abertos.
Camila esticou a mão e pediu para Varuna ergue-se. O espectro aceitou, levantou-se e segurou o rosto da sua amada com ambas as mãos.
_ Pensa em mim a todo tempo, porque não consigo te esquecer. És minha desde o primeiro momento que pisou aqui. Te vi germinar, crescer e florir. Você floresceu para mim, primeiro um ralo botão, tão menina, tão pequena; depois tornou-se rosa, tão bela , tão bonita. Me ganhou, arrebatou o pouco que sou; esse pouco que está em sua frente é teu, minha flor do campo.- proferiu Varuna, regado de ternura e anseios.
_ Atravessei a ponte dos meus sonhos, depois de me erguer da queda que quis cobrir minha existência de medo e nessa procura por me achar, acabei encontrando você. Se tu não és luz, resplandecerei teus caminhos para que não se machuque ao caminhar. Você não está mais sozinho, porque eu estou aqui.- a moça transbordou o muito que continha dentro de si.
As nuvens pesadas da chuva que ameaçava cair eram fiéis testemunhas do casal entregue a paixão. O céu era o teto mais bonito daquela casa invisível que era o amor tórrido dos namorados.
Depois de um beijo que selava uma reconciliação, Varuna e Camila olharam para o céu sem luar. Ambos perguntavam-se em seu íntimo: Quantos amores esse céu e essas nuvens já foram testemunhas? Se pudessem falar, narrariam todas essas estórias? Quantos foram felizes? Quantos foram separados? Quantos conseguiram terminar juntos?
Eles não sabiam, e eu, muito menos. O que sei é que nada sei sobre o tempo que se foi, assim como não sei do futuro. Mas uma coisa é certa: casais apaixonados nunca deixaram de existir. Amores impossíveis também não. E acredito que em alguma parte desse imenso planeta tem aqueles que vivem em silêncio os sabores desse sentimento que primeiro te derruba e depois te convida para dançar. Porque ele sabe o quanto você já dançou sozinho por essa vida.