Ansiedade corria por todas as fibras da menina; como não iria? Evaristo não estava gostando do rumo da história. Camila era sua menininha, não achava que ela tinha idade suficiente e nem malícia para livrar-se de rapazes m*l intencionados. No entanto, Alda não via dessa forma.
_ Criamos filhos para o mundo, ela é uma moça e tem que segurar as rédeas da sua própria vida. - expressou a esposa.
O casal espiava a menina através do vidro da janela da sala.
Camila esperava Marcelo na varanda da frente do imóvel, sentada num banco, espremendo a pequena bolsa entre as mãos, nervosa; isso era evidente.
_ Ela é pura inocência, querida. A ingenuidade encarnada.- proferiu o progenitor olhando para a esposa.
_ Não podemos julgar o rapaz sem antes conhecê-lo, é injusto. Vê, ela parece gostar dele. Está com os cabelos escovados, bem-apessoada, tentou usar saltos.- falou sorrindo, vendo mais um passarinho querendo alçar voo do seu ninho maternal.
_ Saltos?! - o pai fez uma indagação carregada de exclamação, arrumando os óculos na face.
_ Sim, querido. Nossa garotinha com cheirinho de mato está desabrochando para uma linda mulher.- disse a progenitora com os olhos umedecidos.
O espelho da alma do patriarca marejou. Seu coração sofreu um abalo, lembrou-se do nascimento da sua pequena, do quanto chorou emocionado com mais uma florzinha chegando para enfeitar seu jardim, recordou dos seus primeiros passos e palavras, do primeiro dentinho que perdeu e das noites que ela adormeceu em seu colo protetor.
Evaristo chorou, não por achar que estava perdendo-a, mas por se dar conta do quanto o tempo é traidor, passou muito rápido e ele não deu-se conta.
O pai enxugou algumas lágrimas e olhou para a esposa.
_ Espero que ele trate a minha filha como uma princesa, não desejo menos. Se não for para ser assim, quero ele longe dela. - confessou, pensando que somente sua esposa lhe escutava, no entanto, tinha mais alguém perto deles.
Varuna olhou para o homem com admiração, achando louváveis suas palavras. Ele mesmo, se fosse pai, se pudesse ter tido essa oportunidade, não iria querer menos.
O espectro atravessou a parede e parou na frente da moça vestida de cor escura. Os olhos dela estavam inquietos, os nós de seus dedos esbranquiçados de tanto que o pequeno item feminino recebia a força de seus apertos.
Algo há muito retorcido dentro de seu corpo imaterial deixou o fractal micaélico, munido de uma raiva feral. Sua amada iria ter uma noite romântica com outro, com um ser encarnado, um macho; um que não poderia competir de igual para igual, afinal, ele sempre estaria em desvantagem por estar morto.
Sentiu pena de si mesmo, raiva do destino e da menina. Vibrou tanto que os pelos da garota eriçaram. A jovem passou a mão pela pele na tentativa de espantar o sentimento estranho que engolfou seu ser.
Não demorou para uma moto buzinar na porteira; porteira essa que o senhor Evaristo trocou por uma que deixou o imóvel com jeito de fazenda. Era uma daquelas porteiras de madeira pesada, atravessada e cheia de grandes brechas, que dava a visão de quem se aproximasse do belo sino de bronze, objeto que fazia as vezes de uma sofisticada campainha.
Camila sorriu, Varuna ficou encoberto pelo negrume.
A garota ergueu-se de onde estava e andou apressada até a porta, abriu e chamou os pais.
Evaristo e Alda surgiram, como se não estivessem espiando a menina.
_ Marcelo chegou, pai. O senhor disse que queria ver quem ele é. - falou a menina com expectativa, olhos apreensivos.
_ Claro, ele vai sair com um pedaço do meu coração, não pode chegar e carregar, tenho de trocar algumas palavrinhas com o sujeito. - falou sério, agoniado.
_ Sem vexame, meu velho! - Alda redargiu e Evaristo deu-lhe um olhar vexado.
_ Velho? Que isso, dona Alda? - exprimiu, cruzando os braços.
_ Novinho, você não é, querido - atiçou, sorrindo.
A matriarca passou pelo marido, que a olhava com descrença, abraçou a filha pelos ombros e foi saindo para fora da varanda. O senhor Esteves acompanhou a dois passos de distância.
Marcelo empalideceu ao ver o pai da jovem que tinha a direção do seu coração. Desceu do veículo de duas rodas, retirou o capacete e foi até os três. Estava nervoso, com medo de não causar uma boa impressão. Porém, o que o jovem moço não sabia é que ele não tinha caído nas graças do espectro que estava perto da jovem moça . Muito pelo contrário, Marcelo se tornou um obstáculo para Varuna, um entrevero no seu caminho frágil e delicado, nesse percurso que cria linhas finas e invisíveis até Camila.
_ Boa tarde, meu jovem! - o pai apressou o passo, passando na frente das damas.
Marcelo limpou a mão na calça jeans, não que estivesse suja, mas estava molhada pelo suor, produto do nervosismo.
_ Boa tarde! - respondeu meio sem graça.
_ Aonde vocês pretendem ir? - inquiriu o pai. _ Na sorveteria que fica na Av. das Tulipas. - respondeu, desviando o olhar para a menina.
Camila sorriu para Marcelo e esse sorriso, doce, cheio de meiguice e sentimento, foi uma punhalada em Varuna.
Ele se sentiu traído, se sentiu mais insignificante do que achava que era.
Para ele, os sorrisos dela são de um único dono: ele.
Aquelas manifestações de contentamento e verdadeira felicidade, em sua concepção, são gotas raras de um líquido valioso que deveria ser concebidos somente para o seu deleite e de ninguém mais.
_ Não retornem tarde. Não pilote como um irresponsável, lembre-se que você estará com a minha jóia na garupa. Sem bebidas e drogas, quero ela inteira, sem faltar um fio de cabelo. E o mais importante, não ultrapasse limites, estou de olho. - foi enfático, assaz em suas recomendações, melhore expressando, critérios paternais.
Marcelo não falava nada, apenas balançava a cabeça em afirmação.
Camila se despediu dos pais e aceitou o capacete que Marcelo lhe entregou. Não houve beijos, o que foi melhor para o pai, que temia ver sua garotinha com os lábios colados aos de um marmanjo.
Varuna sentiu inveja do rapaz ao ver pequenas e delicadas mãos tocando o corpo do homem. Desejou ser ele naquele átimo de segundo, um desejo impossível, inalcançável.
Amargou profundamente, ainda mais, quando a moto disparou.
_ Ao menos ela está de calça - pensou alto a mãe.
_ Como? - inquiriu o pai sem entender.
_ Tabata tinha emprestado um vestido para Camila usar no encontro, porém na hora de vestir, o zíper arrebentou e soltou na minha mão, quando fui fechar. Já imaginou andar de moto usando vestido? Sem chances, não é mesmo. - explicou a esposa para o marido.
_ Tem coisas que ocorrem para o bem. - falou satisfeito. - Camila poderia colocar algo mais alegre, parecia estar indo para um velório. - completou, pegando na mão da esposa.
Embora ambos não soubessem, o zíper não quebrou por obra do acaso.
Camila procurou preparar-se com antecedência, estava nervosa, temia não conseguir ficar apresentável. Por isso, banhou-se, perfumou-se e vestiu-se, faltando somente fechar o zíper da peça que envolvia seu corpo.
Gritou pela mãe, Tabata estava em aguardo para escovar o seu cabelo e cuidar da maquiagem.
Antes de Alda chegar no quarto da filha, Varuna olhava para as costas da jovem. Pele macia estava à mostra. Quis tocá-la, sentir a textura, ele conseguia, sabia disso, apenas precisava ver-se fazendo isso, ver-se e desejar com ímpeto. Precisava conseguir uma linha de conexão com a menina, algo que pudesse ir aos poucos 'engrossando' com o passar do tempo.
Camila, de repente, se virou, ficando de frente para ele. Varuna teria perdido o fôlego se respirasse, embora essas funções tipicamente dos que possuem matéria ainda estavam consigo, não por necessidade, apenas mero costume.
Seus olhos espectrais abriram-se em demasia, tomou para si a visão da mais indizível beleza. Descobriu-se com ciúmes, com a trava deste perfurando-lhe os sentimentos que desde que perdera seu corpo material, descobriu serem imortais.
Tudo foi abafado em si, quando a mãe da jovem adentrou ao quarto.
_ Sobe o zíper para mim. Nem sei se irei conseguir respirar quando isso fechar. - confessou.
_ Você está um primor, minha linda! O rapaz vai ficar mudo diante de ti. - proferiu a mãe em êxtase.
Alda puxou o pequeno fecho de metal. Varuna, colérico com o que via e ouvia, com o que sentia e não sabia controlar, tocou na mão de Alda, fazendo-a empregar mais força do que o necessário, com isso a peça soltou na mão da mulher.
Camila ficou desolada com o ocorrido. Contudo, a mãe rapidamente arranjou outra roupa para a filha, calça jeans escura e uma blusinha de algodão da cor preta, a peça tinha um leve brilho e mangas com paetês.
Não era feio o conjunto, mas não era bonito. Ficou algo entre singelo e comum. Não causaria o impacto que Camila pretendia provocar no rapaz. Sem opção, a moça trocou de roupa e seguiu para cuidar dos cabelos e da maquiagem. Tabata até lhe ofereceu outros, todavia o tempo não era mais largo para experimentá-los e procurar um sapato adequado, refutou e ficou com a calça e a blusa.
Varuna queria que ela desistisse, assoprava em seu ouvido várias vezes. "Não vai, ficar... não vai, ficar... fica aqui, fica comigo ..."
Por mais que a garota sentisse uma estranha vontade de desistir e não ir para lugar algum, relacionou essa súbita vontade com o desfecho r**m do vestido. Decidida, resolveu ignorar tal vontade ilógica, não seria por causa de uma peça de roupa que perderia a oportunidade de dar o seu primeiro beijo.