Varuna estava mais uma vez irritado, outros estranhos tinham invadido o seu lar. Aquela fazenda era dele e de mais ninguém.
O rapaz, melhor dizendo, a alma dele, vivia mergulhada no mais profundo escuro, nem sabia mais o quanto de tempo já tinha passado desde que descobrira que tinha morrido.
Subjulgado pelas duras memórias o fantasma rememorou tudo pelo que passou após dar-se conta do seu desencarne; desesperou-se, gritou, chorou, mas já era tarde, ninguém podia fazer mais nada por ele. Sua existência foi ceifada brutalmente da camada material da terra. Agora tinha ciência do que se tornou: um espectro, um espírito com sede de vingança, uma alma que não aceitou o findar da sua vida, o rompimento da frágil linha que nos permite existir.
Varuna passou a perseguir a sua família e seus algozes, os seus executores e mandantes, descobriu depois de morto que seus verdugos faziam parte de uma intrincada teia, possuiam até mesmo um escritório de matadores de aluguel. Os trabalhos destes, eram prestados apenas para os mais abastados que faziam parte da elite.
Descobriu depois de sua partida que as calhordices em que seu pai tinha os envolvido eram maiores do que ele cogitava.
Conforme vagava sem descanso, com sua sede de fazer justiça por si próprio, por muito tempo sentiu as dores de ter sua cabeça e corpo parcialmente esmagados pelas rodas do coletivo. Não conseguia esquecer o momento em que se viu fora de sua casca, não acreditava no que estava à sua frente, correu sem se reconhecer, vendo uma corrente brilhante prendendo-o ao cadáver. Depois de algum tempo, esforçando-se para livrar-se dos elos brilhantes, conseguiu, mas ficou atordoado sem saber para onde ir, pensou em retornar para casa, precisava alertar seus pais, contar da perseguição, mas nem foi preciso. Alguns veículos muito conhecidos por ele pararam perto do fatídico acidente.
Varuna ficou sem entender nada, somente quando Anick gritou desesperada por seu nome, ajoelhando-se ao seu lado, foi que se deu conta de que aquele monte de carne disforme era ele, ou melhor, o seu corpo físico. Primeiro negou o quanto pôde, mas ao tocar em sua mãe, percebeu que era de fato real: ele não pertencia mais ao mundo dos vivos, e sim dos mortos.
A mão do jovem atravessou o corpo da senhora Rockefeller e, a partir dali, começou a agonia do pobre espírito perturbado.
Alguns outros espíritos tentaram levar o espectro confuso para outro plano, no entanto, ele negou-se a partir. Não queria abandonar a existência no plano daqueles que usam a porta e não as paredes para entrar em qualquer lugar.
Uma saga dominou o espectro, sendo ele próprio o juiz de cada um que, com suas ideias e ganâncias, mudaram radicalmente o percurso de sua existência.
Ah! O jovem rapaz que apenas desejava desfrutar de uma existência simples não tinha mais resquícios de si. Isso se dava pela falta dos movimentos de inspirar e respirar. Varuna cobriu-se com o crepe do rancor e do ódio, passando a descontar não só nos culpados, mas também naqueles que entravam em seu precioso recanto. O espírito vadio, depois de circular por muitas partes, causando desordem, confusões, acidentes e mortes, retornava para a sua fazenda. Sim, sua fazenda. Na mente congelada do rapaz, aquilo era seu e de mais ninguém. Se realmente existisse o paraíso, ele julgava ser lá.
Certa vez, algum tempo depois de partir, o pobre espírito acompanhou a chegada de novos moradores em seu sagrado lar. Aquilo o fez sentir e provar de uma raiva assaz, cheia de desprezo por parte dos novos que maculavam sua bela propriedade.
Não tardou para a nova família sair às pressas de madrugada depois de meses sofrendo com o paranormal. Varuna tornou-se a assombração da Bella Flor, tornou-se espectro sem luz, nem as orações da mãe e da irmã o permitiam partir, queria mais, queria o sangue daqueles que foram seus carrascos jazendo no solo, sendo fertilizante natural, assim como ele um dia foi, assim como o sangue dele caiu gritando em pura agonia nessas terras secas, ávidas por líquidos que lhe trouxessem satisfação.
Naquele momento, numa noite fria de agosto do ano de dois mil e vinte e um, o espectro olhava deliberadamente para os membros da família, todos amontoados em colchonetes no meio da sua sala.
Varuna aproximou-se, olhou para o rosto de cada um e parou fixando-se em Camila, a fedelha que pretendia ficar com o seu quarto. A menina mirrada, pequena, de pernas magrelas e braços ossudos. Olhou para aquela espécie deplorável e pensou numa forma de atormentá-la, de fazer seus cabelos ficarem de pé como fez com o último atrevido que se atreveu a tomar posse do que lhe pertencia. Deslizou devagar seu olhar para Júnior, o moleque cheirava a medo, um medo puro e gostoso. Depois foi a vez da outra jovem, uma moça linda, corpo com as proporções certas. Varuna sentiu falta de tocar em uma mulher, sentiu falta de provar dos prazeres que há muito nem sabe mais como se inicia o ato. Olhou para as coxas roliças desnudas, quis tocá-las, mas se conteve. Camila levantou num rompante, olhando para todos os lados.
Varuna enervou-se. Quem era aquela menina para atrapalhar sua avaliação minuciosa? Olhou para a garota de rosto magro e cabelos emaranhados.
"Um verdadeiro espantalho", pensou em sua consciência ativa.
Então, por alguma razão, a garota fixou o olhar em sua direção. Ele regelou, pensou que ela pudesse vê-lo. Não queria que fosse assim, queria que fosse de outra forma, uma que o filhote de passarinho não gostasse tanto.
No entanto, logo percebeu que não, ela não gritou, não armou uma cena, não chorou copiosamente, trêmula; sequer conseguia sentir o odor de medo sendo produzido por seu corpo.
Camila retornou a deitar, cubriu-se e ele se aproximou, caminhando pela parte superior, andando pelo ar, parou em cima da garota mirrada e olhou para ela. Ela estava de olhos fechados, cabelos esparramados pelo travesseiro.
"Logo todos vocês estarão fora das minhas terras, longe do que me pertence", sentenciou. Daria um tempo para os invasores se reestabelecerem e depois começaria a trabalhar na retirada de todos.
O espectro sumiu, indo para outro lugar, a cidade de São Paulo, Morumbi. Foi até a irmã, andou pelos corredores da mansão, sabia da gestação da Anick e sabia que não tardaria para o parto ocorrer. Sentia falta de conversar com ela, poucas vezes a visitou em sonho, Anick ao acordar não se recordava de nada.
Varuna parou perto de um móvel cheio de fotografias emolduradas, ele não estava em nenhuma. A tristeza feriu-lhe o âmago, estavam apagando os vestígios de sua existência, empurrando-o para o esquecimento. Arfou, querendo prantear, sabendo que tudo isso poderia ocorrer com um espírito.
Deixou as fotografias para trás e atravessou a parede, Anick dormia, agarrada a um travesseiro de corpo. Sentou-se na beira da cama e ficou a admirá-la. Concordava que a maternidade a tinha deixado ainda mais bonita.
A criança mexeu e ele sentiu, a criança sabia dele e tentava uma conexão. Varuna recuou, não queria, não poderia. Era um espírito n***o e denso que alimentava sua energia a partir de outros seres, seres humanos, sugando o seu ectoplasma.
O espectro retirou-se do local e foi agora para outro ponto, a casa de um dos seus verdugos. Era hora de comer, hora de fazer o sujeito definhar, drenaria suas forças até este dar o último suspiro. Gostava disso, lhe dava prazer no sofrimento dos seus algozes. Na primeira vez que o espectro foi para o seu "acerto de contas", não sabia da força que possuía e nem de suas capacidades mentais, apenas desejou com um impulso muito forte que o ciclista que pedalava na via morresse igual a ele, esmagado, que fosse parar debaixo de rodas de um veículo pesado.
Posicionou-se alguns metros à frente da ciclovia, esperou e quando o seu desafeto passou por ele, Varuna o empurrou com todo ódio que sentia. O homem caiu, rolou para a via de trânsito pesado, carros que trafegavam em alta velocidade não conseguiram reduzir a velocidade, naquela noite um dos membros do grupo dos matadores de aluguel foi estraçalhado em sua frente.
Varuna se divertiu com o desepero do espírito preso ao corpo que não passava de um amontoado de carne desforme. O rapaz deu um assovio alto, estridente e quando o recém desencarnou, olhou em sua direção, Varuna começou a sumir dando sonoras e tenebrosas gragalhadas.
Para o espectro foi prazeroso o olhar de pânico espelhado no espírito imundo do seu algoz, o homem tivera conhecimento ao mirar em Varuna de que estava morto.
" Um já foi faltam se" - sua mente espectral formulou, enquanto caminhava pela ruas estreiras do cemitério da Consolação.
Parou em frente ao mausoléu dos Rockefeller, uma construção toda em mármore Carrara, arquitetura grega salientando seu traço mais marcante: o uso de colunas, que podem ser divididas em três diferentes ordens características: dórica, jônica e coríntia.
O espírito perturbado olhou para onde jazia o seu corpo em putrefação, piscou, parado diante de sua nova realidade, uma realidade perturbadora, que mexia demais com tudo que achou que não seria capaz de acontecer sem ter um corpo físico: sentir.
Ele sentia muito, muitas coisas, nada de bom.
Entrou na morada e foi se aconchegar dentro da esquife, não queria aquilo para o seu corpo de carne putrefata e malcheirosa. Não queria partir, mas nada podia fazer.
"Estou morto, morto, morto." - resmungou para si mesmo, muitas e muitas vezes, não queria acreditar, não podia aceitar, simplesmente aceitar e ponto.