Oliver saiu da sala de emergência com o cheiro de sangue ainda preso nas narinas e o som contínuo do monitor cardíaco marcando o fim. O corredor parecia mais estreito, mais abafado. Ele lavou as mãos duas vezes, depois uma terceira, mesmo sabendo que não era isso que pesava nelas.
A morte, ele estava acostumado ou deveria estar. Fazia parte do trabalho, da rotina, do juramento. Mas quando era um jovem demais, quando ele tinha chances, quando Oliver via o olhar do paciente implorando… era diferente. Doía de um jeito que ele não gostava de admitir.
Ele caminhou sem destino, só querendo respirar. O hospital inteiro parecia um único ruído contínuo, e a mente dele buscou, sem que ele percebesse, um ponto fixo. Um lugar silencioso. Um lugar seguro.
Quando voltou a si, estava parado diante da porta do quarto de Clarice.
Ele piscou, como se acordasse de um transe. Não tinha intenção de ir até ali ou tinha, mas não queria admitir. Sua mão já estava na maçaneta. Ele hesitou um segundo, o suficiente para pensar: O que eu estou fazendo? Ela é só minha paciente…
Mas abriu a porta.
Clarice estava sentada na cama, envolta na luz mais suave do fim de tarde. Cabelos jogados para um lado, a manta até a cintura, uma expressão tranquila aquela tranquilidade frágil que parecia só existir quando ela se sentia observada por alguém em quem confiava.
Ela levantou o rosto devagar, claramente surpresa.
— Dr. Frankwood?
Oliver engoliu seco.
— Eu… estava passando e decici ver como você esta.
Mentira. Clarice percebeu a voz dele estava tensa, rouca, diferente. Ela não sabia o porquê, mas reconheceu o peso no olhar dele. Sentiu o coração apertar.
— O senhor está bem, doutor?
A pergunta, simples, desmontou um pedaço dele.
Ele tentou sorrir. Não conseguiu. Soltou um suspiro discreto, cansado.
— Tive um caso complicado — respondeu. — Achei que um pouco de… silêncio faria bem.
Clarice ajeitou-se na cama, abrindo um pequeno espaço ao lado, como se fosse instintivo, sem perceber a i********e desse gesto.
— O senhor pode ficar aqui um pouco. Se quiser.
A oferta era suave, quase tímida. Mas tinha um efeito devastador.
Era exatamente isso que ele queria. Exatamente isso que ele não deveria querer.
Oliver caminhou até a poltrona e se sentou. Soltou o ar pela primeira vez desde a morte do paciente. Só a presença dela já fazia o peso no peito diminuir.
Clarice observou o jeito que ele apoiou os cotovelos nos joelhos, a cabeça baixa. Nunca tinha visto o médico assim: vulnerável.
E, mesmo assim, ele emanava algo que a fazia querer aproximar-se, querer entender os pensamentos por trás daquele olhar sempre tão firme.
— Sinto muito pelo...caso difícil, doutor — ela murmurou.
Oliver levantou os olhos para ela. Havia algo profundo ali. Um agradecimento silencioso. Um pedido sem palavras.
— Obrigado — respondeu, a voz baixa demais. — Às vezes… algumas pessoas fazem o dia parar de doer um pouco. Você é uma delas.
Clarice corou, surpresa pela sinceridade. E Oliver percebeu.
Percebeu também que estava ficando e não por necessidade médica.
Ele limpou a garganta, preparando-se para se levantar, para recuperar o controle da situação.
Mas, antes que pudesse, Clarice murmurou:
— Pode ficar só mais um pouco?
Oliver congelou.
E ficou
Oliver permaneceu ali, sentado na poltrona, como se aquele pequeno quarto tivesse virado um universo fechado onde nada do lado de fora pudesse alcançá-lo. Clarice parecia igualmente mais leve, talvez por vê-lo menos distante, menos impecavelmente controlado.
— Geralmente o senhor não tira folga? — ela perguntou, tentando puxar assunto.
— Eu tiro — Oliver respondeu, ainda com a voz baixa. — Mas eu… não sei descansar muito bem.
Clarice arqueou a sobrancelha, divertida.
— Como assim “não sabe”? É só deitar, fechar os olhos e não pensar em nada.
Ele soltou um sopro riso quase imperceptível.
— Parece fácil quando você diz.
— E é — ela insistiu, cruzando os braços com uma expressão quase infantil. — O senhor deve ser daqueles que respondem e-mail até no banho, né?
Oliver ergueu lentamente o olhar para ela, fingindo indignação.
— Claro que não.
Ela apertou os olhos, desconfiada.
— É mesmo ?
Silêncio.
Depois, Oliver cedeu:
— …Talvez.
Clarice riu.
Riu de verdade. Uma risada alta, espontânea, cheia de vida. Não era o riso tímido que ela usava quando estava sem graça, nem o sorriso polido que oferecia para ser educada. Era uma risada livre, bonita.
E Oliver congelou.
Por um segundo, ele só a observou. A maneira como o riso fazia seus olhos brilharem, como ela inclinava o rosto para o lado, como segurava a própria barriga de leve, surpresa com o próprio humor.
Ele não esperava aquela risada. Não esperava que ela o atingisse daquele jeito, quente, suave, entrando direto no espaço que ele considerava inacessível.
Ele percebeu que estava sorrindo antes mesmo de notar.
— Gostei disso — ele disse, num tom tão sincero que veio sem filtro.
Clarice parou, meio sem jeito.
— Do quê?
— Da sua risada — Oliver respondeu, sem desviar o olhar. — É… bonita.
Ela abaixou os olhos, corando, mas ainda sorrindo.
— Achei que o senhor fosse sério demais para reparar nessas coisas.
— Eu reparo.—a voz dele veio um pouco mais baixa, mais grave.— Especialmente em você.
Clarice engoliu seco algo suave mas perceptível passou entre eles, uma linha fina de tensão que não tinha nada a ver com dor ou medo.
— Acho que… o senhor só estava precisando rir também— ela disse, tentando diminuir o peso do momento.
Oliver assentiu.
— Talvez eu estivesse.
Por alguns segundos, eles ficaram apenas se olhando. Não era médico e paciente. Não era obrigação, nem responsabilidade. Era só… conexão. Uma que nenhum dos dois entendeu direito ainda.
Clarice puxou o ar, ajeitando-se na cama.
— Se quiser conversar… estou aqui. Digo, não tenho como sair mesmo — ela brincou.
Oliver soltou outro riso leve.
— Eu percebi.
— Só não vale me examinar enquanto conversa — Clarice completou, sorrindo.
— Prometo que não — ele respondeu, com aquele olhar intenso que sempre o denunciava. — Hoje, eu só queria isso mesmo. A sua companhia.
E Clarice sorriu de novo.