Clarice ainda segurava um restinho do riso, como se o eco dele tivesse ficado preso no ar do quarto, deixando tudo mais leve. Oliver percebeu e gostou do efeito. Gostou mais do que deveria.
Ele se recostou um pouco na poltrona, cruzando um tornozelo sobre o outro, numa postura que raramente adotava com pacientes. Ele estava… confortável. E isso por si só já era estranho.
— Então… — Clarice começou, puxando o lençol até a cintura como se se preparasse para uma conversa séria. — Vai me contar o que aconteceu hoje ?
Oliver arqueou um pouco as sobrancelhas.
— Por que pergunta?
— Porque o senhor entrou aqui do nada e… — ela hesitou. — parecia meio… quebrado.
Ele piscou devagar. A palavra partido entrou afiada, mas sem machucar. Vinda dela, soava apenas verdadeira.
— Tivemos uma emergência complicada. Fiz tudo que podia, mas… — Ele inspirou fundo, buscando controle. — Nem sempre é suficiente.
Clarice o observou com aquela sensibilidade silenciosa que era só dela.
— Imagino que isso machuque.
— Machuca — ele admitiu. — Mais do que eu gostaria de admitir.
Por um instante, Clarice ficou em silêncio. Depois perguntou, com a voz mais baixa:
— O senhor chora quando perde alguém? Sempre tive essa dúvida sobre os médicos.
A pergunta acertou Oliver de surpresa.
— Não — ele respondeu após um longo segundo. — Eu… não consigo. Mas sinto. Fica um peso no peito que demora a desaparecer.
Clarice assentiu devagar, compreendendo.
— Acha que isso é errado?
— Não exatamente — Oliver disse. — Mas às vezes eu gostaria de conseguir… soltar. Como você faz.
Ela riu de leve.
— Se eu solto demais, dizem que sou emotiva. Se solto pouco, dizem que sou fria. Acho que… cada um sente do seu jeito.
Ele inclinou a cabeça, analisando-a.
— Você fala como quem já teve que se segurar muito — Oliver disse, quase num sussurro.
Clarice desviou o olhar.
— Eu… tive. Bastante.
E naquele instante, ele sentiu vontade real, profunda de proteger algo que nem sabia se tinha o direito de tocar.
O silêncio entre eles se instalou, mas não era desconfortável. Era denso. Significativo.
— Oliver? — ela chamou, pela primeira vez usando apenas o nome dele.
Ele sentiu o impacto como se fosse físico. Sem o “doutor”. Sem distância.
— Sim? — respondeu, quase rouco.
— Obrigada por vir aqui hoje — ela disse. — Eu não sabia que… ver o senhor sem estar tão serio, me faria tão bem.
Ele piscou, atônito por um segundo.
— Eu que deveria agradecer. Você… me fez rir. — Ele sorriu de lado. — Não lembro a última vez que alguém conseguiu isso.
Clarice abriu um sorriso pequeno, mas cheio de luz.
— Então vou considerar isso uma vitória.
Oliver se levantou devagar, se aproximando da cama não demais, mas o suficiente para que ela o sentisse mais perto. Ele ajustou o soro com movimentos precisos, apenas para ter algo nas mãos.
— Eu volto mais tarde — ele disse, olhando-a nos olhos antes de se virar. — Se você quiser.
— Eu quero — ela respondeu imediatamente, sem pensar.
E esse “quero” ficou queimando nas costas dele enquanto caminhava para fora do quarto mais quente, mais perigoso e mais irresistível do que qualquer coisa que ele esperava sentir por ela.
Era ridículo.
Ridículo o quanto duas palavras tão simples “Eu quero” ainda ecoavam dentro de mim como se tivessem sido sussurradas diretamente no meu ouvido. Eu caminhava pelo corredor do hospital com a postura impecável de sempre, mas por dentro… por dentro estava um caos organizado, fervendo sob a superfície.
Eu deveria me controlar melhor do que isso.
Sou cirurgião.
Sou Dr Oliver FrankWood.
Sou o homem que mantém a cabeça fria enquanto o mundo inteiro sangra.
Mas Clarice…
Clarice me tirava do eixo sem fazer esforço algum.
Entrei na pequena sala dos médicos, fechei a porta devagar e encostei as mãos na pia de inox, respirando fundo. O reflexo no espelho me encarava com um misto de cansaço e um brilho inquietante nos olhos. Eu não deveria ter ido até ela hoje. Não naquele estado.
E ainda assim, meus pés me levaram direto para o quarto dela como se eu não tivesse escolha.
Porque, de alguma maneira absurda, Clarice conseguia desfazer o peso de perder um paciente. Ela não disse nada extraordinário. Não me tocou. Só… foi Clarice.
E isso foi suficiente.
Eu me lembrei do momento em que ela riu aquele som claro, bonito, inesperado. A forma como inclinou a cabeça, como se me enxergasse além do jaleco, além da função, além do controle. Como se eu fosse algo mais do que o cirurgião frio de plantão eterno.
Meu peito apertou de um jeito que eu não reconheci.
— Você está em apuros, Oliver — murmurei para mim mesmo, passando a mão pelos cabelos.
Eu já ultrapassei várias linhas cinzentas na vida.
Mas essa… Clarice… é diferente.
Ela esta vulnerável. Ferida. Desorientada.
E eu deveria mantê-la a uma distância segura.
Mas cada vez que entro naquele quarto, tudo que eu quero é ficar.
Ficar e ouvi-la falar.
Ficar e vê-la sorrir daquele jeito suave.
Ficar e convencê-la, de alguma forma, de que eu posso ser um porto seguro.
Isso é perigoso. Eu sei.
Não só para mim, para ela também.
Porque pessoas como eu… quando se afeiçoam a alguém, não conseguem simplesmente gostar. Não. Eu conheço o tipo de sombra que carrego. O tipo de obsessão que posso nutrir se não tomar cuidado.
E Clarice… Clarice tem aquele tipo de delicadeza que desperta não só proteção. Desperta posse.
Eu não quero imaginar o que Henry faria com essa informação.
Ou o que eu faria com Henry.
A respiração ficou mais pesada, mais profunda. Eu me afastei do espelho, abrindo a porta e voltando ao corredor.
Eu precisava ser racional.
Profissional.
Distante.
Mas, enquanto caminhava de volta ao hospital, só uma certeza pulsava:
Mais tarde, eu voltaria ao quarto dela.
Voluntariamente.
Com a desculpa que fosse.
Porque Clarice Beck, com o corpo ferido e a alma em frangalhos, tinha se tornado sem querer a única coisa dentro destas paredes brancas capaz de me fazer sentir vivo outra vez.