Capítulo 30. Obsessão

1043 Words
Clarice ainda segurava um restinho do riso, como se o eco dele tivesse ficado preso no ar do quarto, deixando tudo mais leve. Oliver percebeu e gostou do efeito. Gostou mais do que deveria. Ele se recostou um pouco na poltrona, cruzando um tornozelo sobre o outro, numa postura que raramente adotava com pacientes. Ele estava… confortável. E isso por si só já era estranho. — Então… — Clarice começou, puxando o lençol até a cintura como se se preparasse para uma conversa séria. — Vai me contar o que aconteceu hoje ? Oliver arqueou um pouco as sobrancelhas. — Por que pergunta? — Porque o senhor entrou aqui do nada e… — ela hesitou. — parecia meio… quebrado. Ele piscou devagar. A palavra partido entrou afiada, mas sem machucar. Vinda dela, soava apenas verdadeira. — Tivemos uma emergência complicada. Fiz tudo que podia, mas… — Ele inspirou fundo, buscando controle. — Nem sempre é suficiente. Clarice o observou com aquela sensibilidade silenciosa que era só dela. — Imagino que isso machuque. — Machuca — ele admitiu. — Mais do que eu gostaria de admitir. Por um instante, Clarice ficou em silêncio. Depois perguntou, com a voz mais baixa: — O senhor chora quando perde alguém? Sempre tive essa dúvida sobre os médicos. A pergunta acertou Oliver de surpresa. — Não — ele respondeu após um longo segundo. — Eu… não consigo. Mas sinto. Fica um peso no peito que demora a desaparecer. Clarice assentiu devagar, compreendendo. — Acha que isso é errado? — Não exatamente — Oliver disse. — Mas às vezes eu gostaria de conseguir… soltar. Como você faz. Ela riu de leve. — Se eu solto demais, dizem que sou emotiva. Se solto pouco, dizem que sou fria. Acho que… cada um sente do seu jeito. Ele inclinou a cabeça, analisando-a. — Você fala como quem já teve que se segurar muito — Oliver disse, quase num sussurro. Clarice desviou o olhar. — Eu… tive. Bastante. E naquele instante, ele sentiu vontade real, profunda de proteger algo que nem sabia se tinha o direito de tocar. O silêncio entre eles se instalou, mas não era desconfortável. Era denso. Significativo. — Oliver? — ela chamou, pela primeira vez usando apenas o nome dele. Ele sentiu o impacto como se fosse físico. Sem o “doutor”. Sem distância. — Sim? — respondeu, quase rouco. — Obrigada por vir aqui hoje — ela disse. — Eu não sabia que… ver o senhor sem estar tão serio, me faria tão bem. Ele piscou, atônito por um segundo. — Eu que deveria agradecer. Você… me fez rir. — Ele sorriu de lado. — Não lembro a última vez que alguém conseguiu isso. Clarice abriu um sorriso pequeno, mas cheio de luz. — Então vou considerar isso uma vitória. Oliver se levantou devagar, se aproximando da cama não demais, mas o suficiente para que ela o sentisse mais perto. Ele ajustou o soro com movimentos precisos, apenas para ter algo nas mãos. — Eu volto mais tarde — ele disse, olhando-a nos olhos antes de se virar. — Se você quiser. — Eu quero — ela respondeu imediatamente, sem pensar. E esse “quero” ficou queimando nas costas dele enquanto caminhava para fora do quarto mais quente, mais perigoso e mais irresistível do que qualquer coisa que ele esperava sentir por ela. Era ridículo. Ridículo o quanto duas palavras tão simples “Eu quero” ainda ecoavam dentro de mim como se tivessem sido sussurradas diretamente no meu ouvido. Eu caminhava pelo corredor do hospital com a postura impecável de sempre, mas por dentro… por dentro estava um caos organizado, fervendo sob a superfície. Eu deveria me controlar melhor do que isso. Sou cirurgião. Sou Dr Oliver FrankWood. Sou o homem que mantém a cabeça fria enquanto o mundo inteiro sangra. Mas Clarice… Clarice me tirava do eixo sem fazer esforço algum. Entrei na pequena sala dos médicos, fechei a porta devagar e encostei as mãos na pia de inox, respirando fundo. O reflexo no espelho me encarava com um misto de cansaço e um brilho inquietante nos olhos. Eu não deveria ter ido até ela hoje. Não naquele estado. E ainda assim, meus pés me levaram direto para o quarto dela como se eu não tivesse escolha. Porque, de alguma maneira absurda, Clarice conseguia desfazer o peso de perder um paciente. Ela não disse nada extraordinário. Não me tocou. Só… foi Clarice. E isso foi suficiente. Eu me lembrei do momento em que ela riu aquele som claro, bonito, inesperado. A forma como inclinou a cabeça, como se me enxergasse além do jaleco, além da função, além do controle. Como se eu fosse algo mais do que o cirurgião frio de plantão eterno. Meu peito apertou de um jeito que eu não reconheci. — Você está em apuros, Oliver — murmurei para mim mesmo, passando a mão pelos cabelos. Eu já ultrapassei várias linhas cinzentas na vida. Mas essa… Clarice… é diferente. Ela esta vulnerável. Ferida. Desorientada. E eu deveria mantê-la a uma distância segura. Mas cada vez que entro naquele quarto, tudo que eu quero é ficar. Ficar e ouvi-la falar. Ficar e vê-la sorrir daquele jeito suave. Ficar e convencê-la, de alguma forma, de que eu posso ser um porto seguro. Isso é perigoso. Eu sei. Não só para mim, para ela também. Porque pessoas como eu… quando se afeiçoam a alguém, não conseguem simplesmente gostar. Não. Eu conheço o tipo de sombra que carrego. O tipo de obsessão que posso nutrir se não tomar cuidado. E Clarice… Clarice tem aquele tipo de delicadeza que desperta não só proteção. Desperta posse. Eu não quero imaginar o que Henry faria com essa informação. Ou o que eu faria com Henry. A respiração ficou mais pesada, mais profunda. Eu me afastei do espelho, abrindo a porta e voltando ao corredor. Eu precisava ser racional. Profissional. Distante. Mas, enquanto caminhava de volta ao hospital, só uma certeza pulsava: Mais tarde, eu voltaria ao quarto dela. Voluntariamente. Com a desculpa que fosse. Porque Clarice Beck, com o corpo ferido e a alma em frangalhos, tinha se tornado sem querer a única coisa dentro destas paredes brancas capaz de me fazer sentir vivo outra vez.
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