A noite caiu devagar sobre o hospital, tingindo os corredores de um azul fosco e silencioso.
No quarto da UTI semi-intensiva, apenas o bip compassado dos monitores acompanhava Clarice. Ela estava acordada, mas não completamente presente havia uma névoa leve em sua mente, os remédios ainda puxando seus pensamentos para longe.
Mesmo assim, ela tentava organizar tudo.
Tentava entender sua própria vida.
Clarice encarava o teto branco, e as luzes frias refletiam nos seus olhos azuis, deixando-os ainda mais vítreos.
Dois tiros ou um?
Não. Foi um.
Ela lembrava da dor rasgante, do chão gelado, da sensação de ser engolida pela escuridão.
Lembrava de pensar que ia morrer ali, sozinha.
E então… o rosto dele.
Um rosto que não deveria ter ficado tão gravado na memória de alguém entre a vida e a morte.O rosto do médico… do Dr. FrankWood.
Os olhos dele tão intensos, tão desesperados eram a única coisa nítida em meio ao caos daquela noite. Clarice não lembrava de muita coisa, mas podia jurar que, antes de perder a consciência, sentiu a mão dele na sua, firme, quente, como se prometesse que não a deixaria.
Eu realmente ouvi ele me chamar de “não me deixa Clarice”?
Ela piscou, confusa.
Talvez estivesse delirando. Ela sabia que medicada assim podia imaginar coisas.
Mas… havia algo nele.
Uma presença. Uma espécie de familiaridade.
Sua mente então foi para Henry.
Seu “noivo”.
A palavra soava estranha. Incômoda. Como um sapato apertado.
Ela pensou no rosto dele mais cedo, quando veio visitá-la.
Tão calmo. Tão… indiferente?
Enquanto seus pais choravam, falavam rápido, agradeciam aos médicos, Henry só ficou ali, braços cruzados, postura rígida, como se a presença dela o incomodasse mais do que o acidentasse.
Ele nem tocou minha mão.
Isso doía mais do que o tiro.
Por que ele não ficou desesperado? Por que não me abraçou? Por que parecia… irritado? Nem ao mesmo disse que me ama ?
Clarice sentiu o peito apertar.
E então veio o pensamento que ela tentava afastar desde que acordou no hospital:
E se não foi um acidente?
E se… alguém me queria morta?
Ela fechou os olhos com força.
“Não pensa nisso, Clarice. Não "
Quando abriu novamente, pensou em Oliver.
No cuidado dele.
No jeito como explicava cada detalhe, sem pressa.
No modo como seu olhar suavizava quando ela acordava assustada.
E em como seu corpo relaxava toda vez que ele entrava no quarto.
E isso… isso a deixava culposa.
Porque ela não deveria sentir segurança naquele homem.
Não deveria sentir nada.
Mas sentia.
E era estranho.
E errado.
E ao mesmo tempo… caloroso, como se alguém tivesse acendido uma lâmpada no fundo de um túnel escuro.
Ela levou a mão à cabeça, massageando a têmpora.
Sua vida inteira parecia errada de repente:
o trabalho que a consumia,
o casamento arranjado que nunca desejou,
a família decidindo tudo por ela…
E agora um médico desconhecido era o único ponto estável em seu mundo desmontado.
— O que está acontecendo comigo…? — sussurrou, a voz fraca, perdida no quarto vazio.
Mas não havia resposta.