As portas automáticos se abriram num estalo metálico.
O som das rodas da maca cortava o corredor como um lamento, e eu já podia sentir o cheiro do sangue antes mesmo de vê-la.
“Mulher, vinte e sete anos, ferimento de bala no abdômen, pressão caindo rápido!” gritou a enfermeira, empurrando a maca em direção à sala de trauma.
Entrei logo atrás, o jaleco ainda úmido da chuva que escorria das janelas abertas do pronto-socorro. As luzes brancas piscavam, refletindo nas poças do chão, e tudo parecia mais lento cada som, cada movimento, como se o tempo hesitasse antes de entregá-la ao meu olhar.
E então eu a vi.
Ruiva.
Cabelos encaracolados, grudados de suor e sangue, caindo em mechas desalinhadas sobre a maca.Sardas finas salpicavam o nariz e as bochechas pálidas, e os olhos meu Deus, os olhos eram de um azul tão claro que por um segundo acreditei ter visto um fantasma.
A máscara do profissionalismo vacilou.Por um instante, não era uma paciente diante de mim. Era Ela.
A mulher que o tempo me levou. A que jurei enterrar junto com a culpa.
Mas, aquela moça ali deitada sangrando não era um espectro. Ela respirava. Ofegante, quebrada, mas, viva.
“Doutor, está me ouvindo?" alguém chamou, mas a voz soava distante.Sim, eu estava ouvindo. Ou talvez estivesse apenas sentindo aquele velho instinto que anuncia a tragédia antes que ela aconteça.
Peguei o bisturi.
Minhas mãos tremiam como e ainda estivesse em um teste da faculdade, e eu não sabia se era pela adrenalina ou pela lembrança.O metal frio refletiu seu rosto por um instante um reflexo distorcido, pálido, quase sereno.
A lâmina tocou a pele, e tudo o que existia era ela.A mulher que eu acabava de salvar... e que, sem saber, acabaria me destruir.
O monitor cardíaco emitia um bip ritmado, constante, quase hipnótico.A cirurgia terminara há vinte minutos, e ela estava estável.Eu deveria me afastar, preencher relatórios, seguir para a próxima emergência.Mas fiquei ali, parado, observando-a respirar.
Clarice Beck.
Mesmo desacordada, havia algo de inquietante em sua presença uma espécie de serenidade que não combinava com o corpo ferido, com os curativos, com a dor que ela devia sentir.As luzes frias refletiam nos fios ruivos espalhados pelo travesseiro, e o contraste entre o branco da pele e o vermelho do cabelo parecia algo saído de um sonho ou um pesadelo para mim.
Cheguei mais perto.As sardas sobre o nariz, o traço do queixo, a curva da boca… tudo nela me dizia o impossível.E, por um instante, o ar pareceu rarefeito.Senti o mesmo frio que me invadiu no dia em que enterrei minha esposa.
Afastei-me rápido, tentando quebrar o feitiço.Ela não era ela.Eu sabia disso ou precisava acreditar.
Do lado de fora da UTI, os familiares aguardavam em silêncio. O som da chuva ainda ecoava no pátio do hospital, e a iluminação pálida tornava cada rosto mais cansado, mais envelhecido.
— Senhor e senhora Beck? — chamei, segurando a prancheta. — A cirurgia foi bem-sucedida. Sua filha está estável, mas ainda corre riscos.
A mãe começou a chorar baixinho, as mãos trêmulas se unindo num gesto de alívio e desespero. O pai apenas assentiu, rígido, o olhar perdido em algum ponto além de mim.
Atrás deles, um jovem se aproximou.Alto, postura impecável, terno escuro fora de lugar naquele corredor de hospital.
— Sou Henry, namorado da Clarice. — disse, estendendo a mão com uma calma que não condizia com a ocasião.
Apertei sua mão, observando-o em silêncio por um segundo a mais do que o necessário.Nada nele tremia. Nenhum sinal de nervosismo, de pavor, de amor em pânico.
O rosto sereno, o olhar fixo, quase... ensaiado.
— Ela vai ficar bem? — perguntou, a voz firme, neutra.
— Está em observação — respondi. — Ainda não sabemos os detalhes do que aconteceu.
Ele assentiu, cruzando os braços.Um homem que acabara de ver a namorada entre a vida e a morte, mas que parecia estar apenas aguardando o fim de uma reunião.
Algo nele me provocou um arrepio incômodo aquela mesma sensação de quando se entra em uma sala cirúrgica e percebe que algo está fora do lugar, mesmo que tudo pareça certo.
Enquanto a mãe soluçava e o pai tentava consolá-la, Henry permaneceu imóvel, observando a porta da UTI com a mesma calma perturbadora.
E eu, sem entender por quê, não consegui parar de observá-lo também.
Voltei à ala médica com o jaleco encharcado de pensamentos.Ela estava viva.Eu a salvei.Mas havia algo errado naquela história.
Clarice Beck não era apenas uma paciente.E aquele homem Henry parecia saber mais do que deixava transparecer.