Capítulo 2. Clarice Beck

766 Words
As portas automáticos se abriram num estalo metálico. O som das rodas da maca cortava o corredor como um lamento, e eu já podia sentir o cheiro do sangue antes mesmo de vê-la. “Mulher, vinte e sete anos, ferimento de bala no abdômen, pressão caindo rápido!” gritou a enfermeira, empurrando a maca em direção à sala de trauma. Entrei logo atrás, o jaleco ainda úmido da chuva que escorria das janelas abertas do pronto-socorro. As luzes brancas piscavam, refletindo nas poças do chão, e tudo parecia mais lento cada som, cada movimento, como se o tempo hesitasse antes de entregá-la ao meu olhar. E então eu a vi. Ruiva. Cabelos encaracolados, grudados de suor e sangue, caindo em mechas desalinhadas sobre a maca.Sardas finas salpicavam o nariz e as bochechas pálidas, e os olhos meu Deus, os olhos eram de um azul tão claro que por um segundo acreditei ter visto um fantasma. A máscara do profissionalismo vacilou.Por um instante, não era uma paciente diante de mim. Era Ela. A mulher que o tempo me levou. A que jurei enterrar junto com a culpa. Mas, aquela moça ali deitada sangrando não era um espectro. Ela respirava. Ofegante, quebrada, mas, viva. “Doutor, está me ouvindo?" alguém chamou, mas a voz soava distante.Sim, eu estava ouvindo. Ou talvez estivesse apenas sentindo aquele velho instinto que anuncia a tragédia antes que ela aconteça. Peguei o bisturi. Minhas mãos tremiam como e ainda estivesse em um teste da faculdade, e eu não sabia se era pela adrenalina ou pela lembrança.O metal frio refletiu seu rosto por um instante um reflexo distorcido, pálido, quase sereno. A lâmina tocou a pele, e tudo o que existia era ela.A mulher que eu acabava de salvar... e que, sem saber, acabaria me destruir. O monitor cardíaco emitia um bip ritmado, constante, quase hipnótico.A cirurgia terminara há vinte minutos, e ela estava estável.Eu deveria me afastar, preencher relatórios, seguir para a próxima emergência.Mas fiquei ali, parado, observando-a respirar. Clarice Beck. Mesmo desacordada, havia algo de inquietante em sua presença uma espécie de serenidade que não combinava com o corpo ferido, com os curativos, com a dor que ela devia sentir.As luzes frias refletiam nos fios ruivos espalhados pelo travesseiro, e o contraste entre o branco da pele e o vermelho do cabelo parecia algo saído de um sonho ou um pesadelo para mim. Cheguei mais perto.As sardas sobre o nariz, o traço do queixo, a curva da boca… tudo nela me dizia o impossível.E, por um instante, o ar pareceu rarefeito.Senti o mesmo frio que me invadiu no dia em que enterrei minha esposa. Afastei-me rápido, tentando quebrar o feitiço.Ela não era ela.Eu sabia disso ou precisava acreditar. Do lado de fora da UTI, os familiares aguardavam em silêncio. O som da chuva ainda ecoava no pátio do hospital, e a iluminação pálida tornava cada rosto mais cansado, mais envelhecido. — Senhor e senhora Beck? — chamei, segurando a prancheta. — A cirurgia foi bem-sucedida. Sua filha está estável, mas ainda corre riscos. A mãe começou a chorar baixinho, as mãos trêmulas se unindo num gesto de alívio e desespero. O pai apenas assentiu, rígido, o olhar perdido em algum ponto além de mim. Atrás deles, um jovem se aproximou.Alto, postura impecável, terno escuro fora de lugar naquele corredor de hospital. — Sou Henry, namorado da Clarice. — disse, estendendo a mão com uma calma que não condizia com a ocasião. Apertei sua mão, observando-o em silêncio por um segundo a mais do que o necessário.Nada nele tremia. Nenhum sinal de nervosismo, de pavor, de amor em pânico. O rosto sereno, o olhar fixo, quase... ensaiado. — Ela vai ficar bem? — perguntou, a voz firme, neutra. — Está em observação — respondi. — Ainda não sabemos os detalhes do que aconteceu. Ele assentiu, cruzando os braços.Um homem que acabara de ver a namorada entre a vida e a morte, mas que parecia estar apenas aguardando o fim de uma reunião. Algo nele me provocou um arrepio incômodo aquela mesma sensação de quando se entra em uma sala cirúrgica e percebe que algo está fora do lugar, mesmo que tudo pareça certo. Enquanto a mãe soluçava e o pai tentava consolá-la, Henry permaneceu imóvel, observando a porta da UTI com a mesma calma perturbadora. E eu, sem entender por quê, não consegui parar de observá-lo também. Voltei à ala médica com o jaleco encharcado de pensamentos.Ela estava viva.Eu a salvei.Mas havia algo errado naquela história. Clarice Beck não era apenas uma paciente.E aquele homem Henry parecia saber mais do que deixava transparecer.
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