A porta deslizou com um ruído suave, quebrando o silêncio pesado do quarto.
Clarice virou o rosto devagar, esperando talvez ver uma enfermeira, ou seus pais…
Mas quando viu Oliver FrankWood entrar, o cansaço em seus olhos azuis se dissolveu num sorriso inesperadamente amplo tão sincero, tão espontâneo que o ar pareceu mudar de textura.
Ele parou no meio do caminho.
Literalmente parou.
Como se tivesse levado um impacto direto no peito.
O sorriso dela o atingiu de forma quase física.
Oliver piscou, desconcertado por um instante. O médico sempre tão composto, tão preciso, ficou… sem graça. Algo raro. Algo que Clarice percebeu, porque seu sorriso cresceu ainda mais uma luz quente contrastando com a palidez de sua pele.
— Oi, doutor — disse ela, a voz fraca mas doce.
Oliver ajeitou o jaleco como quem tenta se recompor antes de continuar avançando até a cama.
— Boa noite, Clarice — respondeu, recuperando o tom profissional… ou tentando.
Mas o brilho nos olhos dele o traía.
Ele parou ao lado dela e checou o monitor, mais para ganhar tempo do que por necessidade real. Sentiu o olhar dela o acompanhando, gentil, curioso.
Tão diferente do olhar perdido que ele viu quando ela chegou, sangrando na maca.
— Dormiu bem? — perguntou, ainda com os olhos no visor.
— Não muito… — Clarice admitiu. — Mas agora estou melhor.
Ele finalmente a encarou.
E havia algo indecifrável ali: uma gratidão muda, um alívio que ele tentava esconder, algo que se aproximava perigosamente de afeto.
— Fico feliz — disse ele, suavemente.
Clarice brincou com a manta sobre o colo, desviando o olhar por um instante.
— Pensei bastante hoje — começou, hesitante.
— Sobre tudo… e… você sempre aparece quando estou pior. Como se soubesse.
Oliver travou.
Só por meio segundo, mas suficiente para ela notar.
— Sou seu médico — respondeu, mantendo a voz estável. — É meu trabalho zelar pela sua recuperação.
— Eu sei… — ela sussurrou, mas algo no tom dizia que ela não acreditava totalmente nisso.
Ele mudou de assunto rápido, como se precisasse fugir daquele território perigoso.
— Isabela me disse que vocês conversaram bem — disse, gentil, mas observando qualquer microexpressão dela.
Clarice assentiu.
— Conversamos… sobre muitas coisas, ela é muito atenciosa.
Silêncio.
Um silêncio que carregava tensão. Curiosidade. Algo não dito entre eles.
Então Clarice ergueu os olhos para ele, azuis e luminosos, ainda cansados, mas intensos de uma forma que ele não esperava.
— Oliver… — usou o nome dele, e seu peito apertou. — Você acha que… vou lembrar de tudo?
Ele inspirou fundo, mantendo a voz firme.
— Talvez.Mas quando lembrar… estarei aqui.
Ela sorriu de novo.
Menor agora, mas mais íntimo.
— Obrigado.
E pela primeira vez naquela noite, quem precisou desviar o olhar foi ele.
Porque aquela confiança aquela entrega sutil mexia com coisas dentro dele que ele tentava, com todas as forças, manter sob controle.
Mas Clarice estava viva.
E sorria para ele como se ele tivesse devolvido o mundo a ela.
E isso… isso era perigoso.
De um jeito que ele não conseguia ou não queria admitir.
Ele saiu do quarto com passos lentos, controlados, mas o controle era apenas na superfície.
Por dentro, Oliver FrankWood estava em chamas.
A porta se fechou atrás dele com um clique suave, e ele ficou imóvel no corredor, a mão ainda segurando a prancheta contra o peito como se precisasse de algo para ancorá-lo à realidade.
O sorriso dela…
Aquele sorriso tinha acabado com ele.
Clarice Beck frágil, ferida, pálida, mas viva olhou para ele como se ele fosse a primeira pessoa que realmente importava desde que acordou. E por um instante, apenas um instante, ele sentiu algo dentro dele se abrir, uma sensação quente, quase luminosa, que não sentia havia anos.
Desde antes de perder Helena.
Seu coração acelerou ao pensar nisso, como se o próprio nome da esposa morta fosse uma agulha.
Por que Clarice sorri daquele jeito para mim?
Por que ela confia em mim tanto assim?
Oliver se encostou à parede fria do corredor, fechando os olhos. Tentou racionalizar:
Era só gratidão.
Era só vulnerabilidade.
Era só um vínculo natural entre médico e paciente.
Mas nada daquilo parecia verdade.
A forma como ela pronunciou seu nome… Oliver… suave, quase íntimo.
A maneira como seus olhos azuis brilhavam quando o viam entrar.
A confiança cega, quase infantil, quase… perigosa.
E aquilo mexia demais com ele.
Ele tentava se convencer de que estava apenas preocupado, apenas sendo responsável. Mas não era isso. Não mais.
Desde que a tirou da maca, desde que segurou sua mão gelada e viu aqueles cachos ruivos se espalhando pelo lençol como fogo, algo dentro dele tinha se movido.
Algo que ele pensou ter morrido com Helena.
E isso o assustava.
Não Clarice.
Mas ele mesmo.
O que estava sentindo.
O que estava querendo.
O que estava disposto a fazer para mantê-la perto dele.
E a pergunta que vinha como um sussurro obscuro:
Por que ela me lembra tanto a Helena?
Não só na cor dos cabelos ou nas sardas delicadas.
Mas no jeito de olhar.
No jeito de sorrir.
Na forma como confiava nele sem reservas.
Era como se o destino tivesse colocado Clarice diante dele para preencher um espaço que ele acreditava ser eterno e vazio.
E isso… isso era perigoso demais.
Oliver abriu os olhos, respirando fundo, tentando recuperar a compostura enquanto via enfermeiras passando ao longe, cuidando de outros pacientes.
Ele não podia, não devia, sentir nada por ela.
Mas quando ela sorriu…
Quando ela disse "obrigado"…
Quando ela disse que ele “sempre aparece”…
Oliver sentiu a pele arrepiar de uma forma que não acontecia desde os tempos em que chegava em casa e via Helena esperando por ele na porta.
E então uma verdade amarga e silenciosa se formou dentro dele:
Ele não queria que ninguém tirasse Clarice do hospital.
Não os pais superprotetores.
Não a família controladora.
E muito menos Henry.
Especialmente Henry.
Oliver percebeu que seus dedos estavam fechados em punho e os relaxou devagar, como quem tenta esconder um segredo até de si mesmo.
Eu sou o médico dela.
Eu preciso protegê-la.
Eu sou quem ela confia.
E no fundo, lá no ponto mais escuro do seu pensamento:
E não vou perder Clarice como perdi Helena.
Não importa o que fosse preciso fazer.