Voltei para a sala de descanso com o corpo cansado, mas a mente inquieta demais para repousar.O encontro com Henry ainda latejava na cabeça o olhar dele, o tom disfarçadamente ameaçador.
Havia algo errado naquela história.Algo que o instinto médico não explicava, mas o instinto humano não deixava ignorar.
Peguei o celular, hesitei por um momento, e então disquei um número que não ligava havia meses.A chamada foi atendida na terceira tentativa.
— FrankWood? — a voz do outro lado soou surpresa. — Há quanto tempo.
— Preciso de um favor, Jordan.
Silêncio curto.
— Um favor vindo de você geralmente é coisa séria. O que aconteceu?
Passei a mão pelo rosto, tentando manter o tom neutro.
— Uma paciente. Clarice Beck.Entrou com ferimento por arma de fogo há cerca de duas semanas. Preciso do relatório policial.
— Você sabe que isso não é exatamente protocolo, não é?— respondeu ele, mas o tom era mais curioso do que repreensivo.
— Eu sei. Só quero entender o contexto. Há algo estranho… — pausei, procurando as palavras. — Algo que não bate com o que dizem.
Do outro lado da linha, ouvi o ranger de uma cadeira.
— Certo, doutor. Me dá algumas horas. Te retorno ainda hoje.
Desliguei, mas o tempo que se seguiu pareceu interminável.O relógio marcava quase duas da manhã quando o celular vibrou sobre a mesa.
Jordan: “Enviei por e-mail. Seja discreto.”
Abri o arquivo.
O relatório era curto , curto demais para um caso de tentativa de homicídio.Vítima identificada como Clarice Beck, 27 anos. Ferimento por arma de fogo no abdômen.Sem testemunhas diretas.
O disparo ocorreu por volta das 00h42, em uma rua residencial próxima ao hospital Saint Claire, onde a vítima trabalhava de cuidadora.Ambulância acionada por civil não identificada, mulher de meia-idade que fazia caminhada noturna. Declara ter encontrado a vítima inconsciente, sangrando, sem indícios do autor do disparo.
Sem câmera de segurança na rua. Nenhuma impressão digital útil encontrada.
Fechei o relatório, o peito apertando.
Sozinha.
Aparentemente sem motivo.
Nenhum roubo. Nenhum registro de briga.
Mas o que me chamou atenção estava no último parágrafo:
“Vítima apresentava sinais de luta anterior ao disparo. Hematomas leves nos braços e ombros, compatíveis com contenção física.”
Luta.
Mas com quem?
Deixei o arquivo aberto por longos minutos, o olhar fixo na tela, até que percebi o próprio reflexo no monitor exausto, inquieto, mas… determinado.
Sabia que deveria parar ali.
Que um médico não tinha o direito de se envolver.Mas cada instinto dentro de mim gritava o contrário.
Clarice não lembrava o que aconteceu.E eu tinha a sensação incômoda de que alguém ao redor dela preferia que continuasse assim.