06

1972 Words
Hannah Somos quatro na operação dessa noite. Duas mulheres e dois homens. Uma missão objetiva e sem grandes riscos. Bem, ao menos era o que pensávamos. Saímos para verificar alguns relatos de pessoas sendo mantidas como reféns por um grupo de rebeldes. Não temos nada de fato concreto, mas ninguém deixaria uma informação dessa passar sem verificação. Muita gente já foi ferida pelo mundo por apoiadores extremistas. Muitas enviadas para casa para serem enterradas cedo demias. O clima está frio desde o início do meu turno. Mas parece diferente, de alguma forma. Sei lá, mais forte, mais sombrio que o normal. Eu sei que é besteira, mas é essa a sensação que tenho. Infelizmente não tenho tempo para focar nisso, porque tenho coisas mais importantes com as quais me preocupar, como por exemplo com a droga da situação na qual nos encontramos. Estamos em uma parte abandonada da zona portuária de Nova York. Há fileiras de prédios destruídos para onde quer que olhemos. Telhados e andares superiores cheios de fendas. As cicatrizes do tempo estão espalhadas por todas as direções. Ao lado do banco do motorista está Michael Davis. Aos 26 anos, ele é um companheiro de equipe, um amigo e um homem que jurou me seguir até os confins da terra. Uma descrição adequada para alguns dos lugares onde tínhamos executado missões ao longo dos últimos meses. Atrás do volante, está Brandon Price, 29 anos. Um homem de alma leve, que nunca falava m*l de ninguém e que as vezes se mostrava gentil demais para a profissão que escolhera para a vida. Sentada ao meu lado, com seus cabelos negros presos, está a tenente Alice Johnson, minha melhor amiga desde o treinamento especial. Aos 27 anos, ela é conhecida como uma das agentes mais duronas da equipe tática, mas tem uma paixão secreta por livros de romance. Um dia eu a flagrei lendo um desses exemplares e ela ameaçou me cortar com uma faca enferrujada se eu contasse para alguém. Cada um de nós tem uma expressão apreensiva no rosto enquanto o humer avança pela pista irregular ao longo do porto abandonado. E não só pelo clima e pela sensação de emboscada iminente, mas pela incerteza de sairmos vivos dali. Se alguém tivesse me perguntado, eu diria que era contra sair para aquela missão sem maiores informações e a certeza de que teríamos reforço. Mas a minha opinião não é importante. Mesmo sendo capitã, eu estou seguindo ordens. É isso que significa ter um superior. — Odeio essa droga toda. Meus pensamentos já haviam migrado para Anna, minha noiva, quando meu cérebro acorda com as palavras de Brandon. Alice e Michael se voltam para ele e o encaram com uma mistura de consternação e desgosto. — É sério, Brandon? — Alice diz, irritada. Brandon fica em silêncio e apenas dá de ombros. Ele é o mais alto de nós, mas consegue ser bem rápido. Ou pelo menos era o que eu pensava antes de cairmos na droga da emboscada. — Não começa… — digo, tentando aliviar o clima. — Você sabe que no instante em que permitirmos que a situação venha a nos abalar, nossa sorte acaba. A tensão no ar é palpável. Eu não me lembro de ter sentido nada desse tipo desde que participei da minha primeira missão. — Só estou falando. Sempre que somos designados para essas missões de alto nível, precisamos encarar a realidade de que talvez não voltemos para casa — Ele diz enquanto saímos com cautela do humer. Michael se aproxima para ficar cara a cara com Brandon. — A gente sempre soube que seria assim. Se queria segurança, deveria ter escolhido um cargo no gabinete da polícia e não entrado para a equipe tática. Brandon o empurra, e eu coloco o braço entre eles antes que os dois esquentadinhos piorem uma situação que já está bem complicada. — Tenho o direito de dizer o que penso — Brandon reclama, empurrando nós dois e depois passando as mãos nos cabelos em sinal de frustração. — Tenho o direito de dizer a verdade. Essa situação é bem mais complicada do que aparenta e o reforço não vai chegar a tempo. Menos de dez minutos depois, veio a confirmação de que ele estava certo. Brandon não volta para casa. De repente, o tempo acelera e se alonga. Segundos depois, eu estou no chão, com Michael e Alice ao meu lado. Tento entender o que eles dizem, mas tudo se transforma em um completo caos. Tem sangue por toda parte. Meu. Deles. É uma grande bagunça metálica e amarga. Eu pisco. Estou no hospital. Alguém segura minha mão. Eu reconheço esse toque. Minha mãe. Dor. Dor. Dor. Sinto como se alguém tivesse quebrado meu corpo por completo, mas, pensando bem, eles quebraram mesmo. Quase dou as boas-vindas à dor, porque sei que isso significa que estou viva. Mas fico no quase, porque dói para caramba. E eu quero mesmo é que a dor vá embora. Uma voz profunda, distante, enche meus ouvidos. Não tenho certeza se é alguém de fato distante ou só mentalmente distante. Mas acho que está com raiva. Não consigo entender o que está dizendo. Mas acabei de fazer uma cirurgia. Por que alguém estaria com raiva de mim? Tento abrir os olhos. É muito difícil, minhas pálpebras parecem inchadas e pesadas. Espero ver as paredes brancas da UTI, uma enfermeira pairando sobre mim. Espero ouvir o sinal sonoro dos monitores. Espero sentir no ar um cheiro amargo e adstringente. Nada é como eu esperava. Eu vejo os edifícios em ruínas da zona portuária ao meu redor. Sinto o cheiro de terra úmida e da noite. Sinto cheiro de medo. Estou sendo arrastada pelo chão. Meu coração está batendo na garganta. O sabor acre de puro terror explode em minha boca. Dor. Dor. Dor. Na minha perna, na minha cabeça. Tudo que vejo é luz. Luz branca. Luz brilhante. Merda. Estou morrendo? Tento gritar. Não posso. Então tudo desaparece. O pânico. A dor na perna. E de repente eu não estou mais lá. Estou aqui. Não é a primeira vez que eu acordo completamente agitada. Mas é a primeira vez, desde que estive internada no hospital, que outra pessoa está comigo quando desperto. Não me lembro bem das enfermeiras, mas é obvio que nenhuma delas se parecia com Gabrielle Rodrigues ajoelhada na minha cama, usando apenas uma camisa branca larga e um shortinho preto. Então, eu me dou conta de que ela está aqui. No meu quarto. O motivo é bem claro. O pesadelo. Devo ter gritado, como já fiz tantas vezes, e Gabriella veio descobrir por quê. — Saia, agora! — Ordeno, me sentando e me afastando antes que ela possa me tocar. — Você estava gritando — ela diz, calma, enquanto tenta se aproximar de mim. — É claro que estou gritando. É a droga de um pesadelo que me lembra do pior dia da minha vida. Levo alguns segundos para compreender o que falei, então passo as mãos pelo meu rosto para ver se acordo. Tento ver algo que não seja meus companheiros de equipe morrendo. Lembranças são mesmo assustadoras, a maneira como podem acabar com a gente com nossos próprios pensamentos. — Sai daqui — insisto. — Com que frequência isso acontece? Eu a ignoro e tento me levantar, mas a fisgada na perna esquerda me faz desistir. No peito, meu coração continua acelerado. O pânico me sufoca e eu não consigo decidir se é melhor puxar ou soltar o ar. Apoio as mãos sobre a cama e fecho os olhos, começando a tentar estabilizar minha respiração. — Quer tomar um pouco de água? — Ela pergunta. — Ah, claro. Água vai consertar tudo — digo, com ironia. — Você não sabe de nada, garota. — Ótimo — ela retruca. — Muito original. Eu não me importo com suas grosserias, mas essa sua atitude está começando a ficar repetitiva. A parte decente que ainda existe em mim, que eu sei que está em algum lugar, quer pedir desculpas. Não, quer implorar para que ela me perdoe, porque eu não sou o tipo de pessoa que sai descontando suas frustrações nos outros. Sinto dedos envolvendo o meu pulso. Seus olhos se fixam nos meus, e eu tento puxar minha mão de volta, mas ela segura firme, porque parece conhecer a expressão em meu rosto e compartilhar em parte da sensação responsável por ela. — Para. Solto sua mão e me levanto, ignorando a dor na perna. Ela está perto demais, e sua presença é tão equivocada que não sei como reagir. Então viro as costas para Gabriella e levo as mãos à cabeça, tentando manter a calma. Meu maior desejo é mergulhar no nada e nunca mais voltar. — Hannah. — Para — repito com firmeza. — Só porque fui educada e deixei que falasse um pouco sobre sua vida no Brasil enquanto jantávamos, não quer dizer que você pode vir aqui para me consolar sem nem ter ideia do que aconteceu. — Então me diz o que aconteceu — ela pede, completamente calma e racional, o que só me deixa ainda mais irritada. — Ou diz para alguém. Novidade. Como se eu nunca tivesse recebido esse conselho antes. Mas não é o conselho em si que me irrita; é o fato de que, pela primeira vez, fico tentada a segui-lo. Pela primeira vez, quero deitar a cabeça no ombro de alguém, deixar que me conforte e ouvir que vai ficar tudo bem. Quero compartilhar as coisas terríveis que guardo dentro de mim. É perigoso para qualquer pessoa ficar perto de mim quando tenho esses pesadelos. Mas ela está aqui, com sua gentileza, invadindo meu espaço quando minha adrenalina corre solta, quando estou com raiva, prestes a punir alguém — qualquer um, começando por mim mesma —, bem… Fecho minhas mãos em punho para bater em minha perna, mas ela vem na minha direção e segura meu pulso. Sinto seu perfume me invadir, e fico ainda mais no limite. — Saia do meu quarto — exijo. Minha voz fica falha. Depois da droga do pesadelo e de tanto sentir raiva, não apenas me sinto fisicamente exaurida, como emoções mais suaves começam a aflorar. — Quantas vezes vou precisar repetir isso? Viro a cabeça de leve, só para ver sua reação. Gabriella continua me observando e não consigo ler sua expressão. Odeio o fato de não poder decifrá-la. Ela pisca rapidamente e levanta os olhos. — Vou embora quando prometer conversar com alguém sobre os pesadelos. E se escrevesse sobre eles? Pelo último ano tenho escondido bem minhas emoções. É meio que uma habilidade necessária quando tudo o que você conhece, tudo o que um dia você foi, é tomado de si. E admito que em alguns momentos até penso não ser capaz de sentir mais nada. Mas agora tenho certeza que estava enganada, porque a atitude insistente e sem qualquer constrangimento de Gabriella é como uma facada no peito. Pior ainda, pelo modo como seu sorriso desaparece do seu rosto, posso dizer que ela entende. Ela entende que as coisas não são tão simples assim de serem resolvidas. — Será que você pode me escutar e sair do meu quarto? — Digo, puxando minha mão. — Hannah. — Quanta insistência, caramba — continuo, aumentando a voz. Estamos próximas e sou pega totalmente desprevenida, porque seus olhos parecem… tristes. E é impossível não me questionar o motivo. E pior, porque isso me incomoda tanto? — Gabriella — digo quase em um sussurro. Por um segundo, nenhuma de nós faz nada. Gabriella continua olhando para mim, como se ponderasse sobre qual atitude tomar. Então, antes que eu possa registrar, sinto seus braços me envolverem em um abraço. E para a minha surpresa, eu não tento me desvencilhar. Eu simplesmente me permito ser abraçada.
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