Em nome do Fim
Dizem que as almas são eternas, mas o que podemos dizer dos corpos que a terra se recusa a comer? Aqueles que jazem entre o mundo dos vivos e a morte, pendurados em um limiar onde o silêncio é a única sentença.
Dizem que tudo começou com uma prece.
Uma voz erguida aos céus, suplicando luz...
E foi assim que as trevas responderam.
Era uma era de medo e fervor, em que os sinos das catedrais ditavam o compasso da morte. As pessoas viviam amarradas ao aço e à fé, marchando sob o estandarte de um Deus ausente, suas espadas embebidas em sangue e suas almas cobertas de orações. Por toda parte, homens cobriam as lâminas com o véu do sagrado e pregavam paz, enquanto ceifavam futuros — um por um, silenciosamente, como quem corta a corda de um fio tênue prestes a se romper.
Reinos inteiros foram erguidos sobre os ossos dos justos, sobre as lágrimas dos inocentes, e muitos tombaram sem sequer saber o motivo da própria sentença. Sob as bandeiras que ostentavam a cruz, havia pactos escusos feitos com sombras que nem mesmo o clero ousava nomear.
Na penumbra dos mosteiros, não se ouvia apenas o sussurrar das orações. Entre manuscritos antigos, pergaminhos manchados de suor e sangue, e salmos corrompidos pelo tempo, secretos juramentos foram tecidos. Ali, em criptas frias e corredores onde o tempo se diluía entre velas consumidas e o silêncio da pedra, coisas proibidas nasceram — criaturas que a razão jamais ousaria nomear. Almas presas entre mundos, sombras vestidas de carne, espectros com olhos famintos. Fruto da perversidade por parte daquele que prometera pregar o amor e a paz.
Amores foram partidos como vidro antigo, espalhando cacos afiados que cortavam mais fundo que qualquer lâmina. Aqueles que ousaram desafiar a maior autoridade, que levantaram seus seus desejos e anseios contra a designação, acabaram por se perder, por serem condendos, devorados pela própria coragem. Outros, cansados da luta, se entregaram de corpo inteiro, desejando o gosto amargo do abismo em seus lábios — uma promessa de esquecimento, de fim para toda dor.
O mundo que se conhecia ardeu em chamas — não com o fogo das fornalhas que aquecem ou moldam, mas com o fogo que purifica a alma ou a condena para sempre. Cada cidade incendiada, cada rosto apagado no crepúsculo, cada fé virada em cinza, deixou um eco que ainda dança através do tempo, como uma melodia triste entoada por ventos solitários.
Não há lápides frias para os mortos que se recusaram a descansar. Nem orações capazes de acalmar o que rasteja sob o chão sagrado, alimentando-se de segredos enterrados e promessas quebradas. A morte, naquele tempo, não foi um descanso, mas uma maldição — um tormento sem fim para aqueles que ousaram desafiar o que não deveriam.
Alguns dizem que certas espadas ainda vibram, enterradas em ruínas onde o sol jamais ousa tocar. Que corações ainda batem, mesmo separados de seus corpos, pulsando no silêncio profundo da terra. Que beijos carregados de amor foi a espada que rompeu pactos. Despertando a ira daquele que possuia sobre o seu domínio segredos mais antigos que o próprio pecado, ligados por laços invisíveis entre o mundo dos vivos e o além.
E esse levantou-se, tocando o que era sagrado.
A alma do aflito jurou vingança...
No entanto levou sobre si fúria, amaldiçoando o próprio nome e cuspindo sobre o tempo...
Este ainda espera.
Não importa quantas eras passem, quantas igrejas desabem, ou quantos impérios se ergam, o sangue lembra. A terra guarda. E as sombras...
As sombras ainda têm fome.
E esta fome é antiga como o mundo. Uma fome que sussurra entre as árvores retorcidas, que se esconde no vento que corta o rosto dos solitários, que se esconde em olhos vazios que não refletem luz. Aquela fome que não conhece misericórdia nem perdão, que só busca saciar-se no caos e na destruição.
Não há quem escape dela. Nem santos, nem reis, nem anjos caídos. A fome das sombras é implacável, e se alimenta da dor humana, da dúvida, da traição. Ela é o segredo guardado em silêncio, a verdade que ninguém ousa encarar.
Alguns ouviram suas vozes na calada da noite — sussurros que serpenteiam entre os ossos, chamadas que atraem os mais desesperados para uma dança macabra. Eles seguem, como marionetes movidas por fios invisíveis, até que se perdem no abismo do qual ninguém retorna.
Mas há aqueles que, mesmo diante de toda a escuridão, ainda ergueram os olhos para o céu. Que se recusaram a dobrar o joelho, mesmo que a própria esperança fosse um fio tênue prestes a se romper. São eles os verdadeiros guardiões — não por glória, mas por desespero. Lutando contra o fim, não como vencedores, mas como sombras que resistem à noite eterna.
FIM.
Ou seria apenas o começo?
Porque enquanto a última vela se apaga e o silêncio se faz absoluto, algo se move entre os escombros do que foi e do que virá. Algo que nem o tempo pode esquecer. Uma promessa feita em sangue e fogo, aguardando o momento certo para renascer.
E quando isso acontecer, os sinos não mais dobrarão para anunciar a morte. Eles soarão para anunciar o retorno.
O retorno do que jamais deveria ter sido despertado.