Capítulo-I. Escuridão
“Viver é sofrer, sobreviver é encontrar algum sentido no sofrimento.” (Nietzsche)
Ragnar
Eu saio do elevador com destino à área do prédio onde o rato de negócios, Edgar Freitas, exerce os seus mandos e desmandos. Meus passos são largos e irritados pelo corredor. Não suporto países localizados na região entre os trópicos de Câncer e Capricórnio, caracterizados por altas temperaturas e grande variação de precipitação entre estações secas e chuvosas. Isso aumenta a transpiração do meu corpo, causando-me uma desidratação aguda.
Segue ao meu lado o meu irmão Hunter, que atua neste século como advogado, e os seguranças um pouco mais atrás, mesmo que não sejam necessários. A cada passo que damos, pessoas se afastam do caminho, sussurros chegam aos meus ouvidos e o pulsar de seus corações também. Cabeças se viram para nos olhar, rostos ficam pálidos — afinal, não é sempre que o dono se desloca da Escócia para o Brasil. Infelizmente, meus pés pisam nesta terra que fora predominantemente povoada por tribos indígenas como os Tupi, Jê (Tapuia) e Aruaque, além dos Caraíbas.
— A bheil thu a' faireachdainn an fàileadh aca? — Hunter a’ sgreuchail.
(Sente o cheiro deles? — Hunter sussurra.)
— Tha, cuimhnich air na tha sinn air tighinn a dhèanamh an seo.
(Sim. Concentre-se no que viemos fazer aqui.)
Falamos em gaélico escocês para dificultar o entendimento dos demais.
Dobro o corredor e uma mulher, com perfume adocicado demais, corre em nossa direção.
— Posso ajudá-lo?
Paro e olho em seus olhos, muito embora as lentes escuras dos meus óculos não permitam que a mulher tenha uma visão total das minhas íris.
— Com licença, o senhor tem hora marcada? — olhei para a espécie de cima, meu tamanho sobrepujando o dela.
Escutei o estalar de dentes de Hunter, olhei em sua direção. Não era para ele empreender com alterações.
— Creio que o senhor Edgar não instrui adequadamente os funcionários desta sucursal. É uma lástima.
Desvio da figura pequena, irritante e de perfume enjoativo. Sigo na direção da sala do infeliz que desviou por dez anos recursos da minha empresa.
MAC ANGUS & THORNE INDÚSTRIA foi fundada em 1894, nas terras altas da Escócia. Trata-se de uma multinacional especializada em engenharia de precisão, tecnologia sustentável e energias renováveis. Sua origem se deu na metalurgia e construção de locomotivas no século XIX, mas hoje atua em três grandes áreas: turbinas eólicas inteligentes, infraestrutura ferroviária sustentável, engenharia marítima e energia das marés.
Há cerca de 70 anos, abriu-se uma sucursal brasileira que funciona como um hub de inovação climática e pesquisa de bioengenharia de materiais, com foco na adaptação da tecnologia escocesa ao clima tropical. Os três últimos diretores gerais que ocuparam o cargo de altíssima importância dentro dessa sucursal não tiveram a ousadia de cometer tal infração imperdoável como Edgar Freitas cometeu. Sangrar o patrimônio de um Murdoch é entrar em um campo oculto que ele não conhece.
As sucursais espalhadas pelo mundo apresentam balanços trimestralmente, e todas expandiram a olhos vistos nas últimas décadas. Entretanto, esta, localizada no Paraná, fez um caminho inverso, segundo os gráficos — algo estranho, considerando que nossa clientela é composta basicamente por altos executivos.
Roderick, meu tio, quis sanar o problema, porém pedi para que deixasse Edgar dar mais algumas voltas com a corda em seu pescoço frágil, porque seria eu a quebrá-lo, e esse dia chegou.
Abro a porta da sala que o rato ocupa. A cena que encontro é depravada: ele está atrás de uma mulher curvada sobre a mesa. Eles copulam como dois animais.
Meus olhos seguem dela para Edgar, que perde a cor sadia do rosto. Sua pele ganha uma palidezcadavérica.
— Droga! — resmunga, tentando recompor-se de forma desajeitada.
A mulher ergue-se apressada, puxa o tecido da roupa para baixo, tentando proteger suas vergonhas. Era tarde, tínhamos visto demais. O cheiro do sexo estava impregnado no ar, juntamente com o cheiro de madeira velha e charuto.
— Desculpe-me, com licença. — profere a mulher antes de sair da sala apressada. O cheiro dele está nela; o rastro fica no ar após sua passagem.
— Senhor Murdoch, não me disse que vinha. — fala sem firmeza na voz.
Dou um passo à frente, paro e olho através da enorme parede de vidro.
— Preciso avisar para vir na minha empresa? — sou mordaz.
Edgar sorri sem graça, mostra os dentes levemente amarelados.
— Não é isso que eu quis dizer, apenas gostaria de estar melhor preparado para lhes recepcionar.
Ando pelo local, observando tudo, cada detalhe — da tapeçaria à estante cheia de exemplares que servem apenas para acumular pó.
— Não desejaria que interrompêssemos a sua cópula com a dama? Fomos intrusos?
Edgar corre até um carrinho de bebidas, prepara dois copos, oferta-me um. Apenas olho e desvio o rosto, movendo-me para outra ponta da sala.
Minhas vestes escuras em nada ornavam com os tons pastéis do ambiente. Eu estava detestando tudo, em especial aquele fraco, bajulador.
Edgar largou os copos sobre o carrinho de qualquer jeito, feito um porco que luta para não ir ao abate. Está com receio, eu sinto: as fibras do seu corpo retesam, os batimentos são céleres. Ele tem medo de ser pego. Uma pena, já foi descoberto.
Sento-me numa das poltronas de frente para a mesa de madeira angelim onde Edgar costuma assinar os papéis que sangram o meu patrimônio. Hunter toma outro assento. O silêncio recai sobre nós.
— Um passeio ao Brasil... aproveitou para vir acompanhar o andamento da empresa.
Sorri, frio, sem ânimo.
— Detesto o Brasil, não estaria aqui se a razão não fosse de extrema importância.
Edgar engasga, os olhos verdes arregalados.
— Então...?
Hunter move-se lentamente, abre a pasta de couro que trouxe em mãos, retira um envelope de papel pardo e coloca em cima da mesa de Edgar.
Faço menção com a mão para que o escroque abra e tenha acesso ao teor. Assim o infeliz procede. É audível seu espanto.
— Eu posso explicar tudo isso, é alguém querendo o meu lugar, forjaram essa papelada!
Um rosnado fica preso em minha garganta. Eu respeitava tanto o maldito trabalho do homem! Isso tudo caiu por terra quando recebi em minhas mãos um relatório-bomba, evidenciando que o desgraçado não possui integridade e tampouco honestidade.
— Não tem explicação, Edgar. Meus diretores financeiros da matriz escocesa detectaram oscilações nos balancetes apresentados por esta sucursal, administrada pelo senhor. Faz dois meses que contratei uma firma de auditoria, na penumbra do seu conhecimento. Contratei também um hacker especialista em invadir contas bancárias. O resultado foi o relatório concluído no mês passado. O documento mostra claramente o sumiço de grandes somas progressivamente, por dez anos. E o hacker mostrou o destino do produto do roubo: paraísos fiscais. No entanto, a sua inteligência foi pequena ao colocar a conta no nome de um parente: sua irmã, Liliana Freitas.
Edgar puxa o ar com dificuldade, está sob pressão, sendo desmascarado. Meu pé está sobre a sua garganta, pronto para quebrar todos os ossos.
— Aproveitou bastante, não? — ironizo. — Carros de luxo, mansão à beira-mar, cobertura em Nova York...
Levanto-me, aproximo-me da mesa com um sorriso sutil e mortal estampado no rosto. Em um movimento ágil, pego Edgar pelo colarinho da camisa e faço o verme se erguer da cadeira de maneira abrupta.
— Dez anos! Dez anos, p*rra! Acreditou mesmo que não iria ser pego? Esqueceu de algo, Edgar: ratos sempre deixam rastros. São pragas nojentas que se entregam. Seu erro, bem comum aos ladrões, foi ser engolido pela ganância, tanto que não conseguiu encobrir mais as falhas maquiando os números dos balanços. Quem te ajudou? A mulher com a qual estava se fartando em sua carne?!
Solto Edgar, o corpo do homem sofre o impacto contra a cadeira. Retiro meus óculos escuros para olhar diretamente nos olhos do ladrão medíocre que conjecturou ser mais esperto que um ser centenário.
O homem possui o medo usurpando o brilho da arrogância e soberba em seus olhos. Seu suor pinga em gotas. O respirar dele está suspenso.
_ O que vão fazer comigo? Vai me colocar na cadeia?
Ergo meu corpo o olho do alto. Seu castigo precisa ser equivalente ao que fez, cadeia é pouco.