Capítulo- XIX. Recepção.
" Nem todo espetáculo possui palhaços, outros possui velas negras e um coração sangrando."
Liliana
A cena retrata a minha ruína. Estou temporariamente presa a um homem estranho, sobre o qual nada sei — nem sequer desejo descobrir. Porém, ignorando tudo isso, toda vez que ele encosta em meus lábios algo estranho acontece dentro de mim.
Ele é bonito, imponente, possui um ar letal. Muitas vezes me olha com frieza, e a sombra de um sorriso cínico brinca em sua face. Meu coração golpeia minhas costelas, arrancando dos meus pulmões todo o ar.
A sensação incômoda de saber que sou sua esposa não me deixa. Mesmo que, por pura curiosidade, eu o sonde para entender mais sobre esse homem, sinto que não chego a lugar algum. É como estar perdida em uma floresta: andar, andar e sempre retornar ao mesmo ponto — dar voltas em círculos.
A decoração evoca luxo, embora pareça que estou em um evento temático e sombrio. Meus olhos percorrem todos os cantos. Observo duas mesas elegantemente decoradas: uma posta para dois, outra para mais pessoas.
Engulo em seco ao passo que Ragnar caminha comigo na direção da mesa posta para dois. Conforme nos aproximamos, enxergo melhor os detalhes: a toalha escura é adornada com tecido brilhante que reflete a luz. A decoração é rica, com arranjos florais em tons de roxo e rosa-escuro, combinados a elementos sombrios.
Velas pretas em castiçais ornamentados e pilares lançam uma luz suave e cintilante, criando uma atmosfera acolhedora e misteriosa. Taças de vinho e pratos pretos completam a composição, sugerindo um jantar requintado.
Acima das mesas, lustres de cristal dourados pendem do teto, iluminando a cena com brilho opulento. As luzes dos lustres e das velas criam um jogo de reflexos que adiciona profundidade ao ambiente. Ao fundo, cortinas escuras e mais lustres embaçados complementam a atmosfera luxuosa e sombria. Tudo denota a essência de uma celebração sofisticada.
Ragnar afasta a cadeira para que eu me sente. Não entendo seus modos, uma vez que sua clara intenção é apenas me usar para obter uma criança.
— Para que fez esse espetáculo todo? Vestido e recepção? Poderia ir direto ao ponto. — digo em pura agonia.
Os olhos dele erguem-se soberanos em minha direção.
— Primeiro, fiz porque posso. Segundo, nada aqui precisa lhe agradar.
Suas palavras me ferem. Não deveriam mais ferir, mas ferem.
— Certamente sua presença me é muito desagradável. Te odeio! — digo, travando os dentes com força, meus olhos o espetando sem se atrever a piscar.
Um sorriso cínico brinca em seu rosto perfeito, o que me causa severa irritação.
— Odeia? O que importa isso? No final, estará sendo minha mulher.
Estremeço; meu coração para na garganta. Estou prestes a dizer coisas desagradáveis quando um garçom se aproxima, interrompendo meus pensamentos. Somos servidos com pratos de bela apresentação.
— Culinária francesa. — ele comenta, erguendo uma sobrancelha.
O cheiro me é familiar. Minha mãe amava a culinária francesa, e por essa razão meu pai sempre nos levava a restaurantes aos finais de semana para lhe proporcionar momentos de alegria. Bons dias aqueles... ficaram apenas as memórias. Um sorriso triste brota em meu rosto.
— O que estás a pensar, menina?
Ergo meu olhar e encontro a intensidade dos olhos de Ragnar.
— Passado, senhor Murdoch. Tempos que não voltam. Coisa minha. — digo, quando a sombra de alguém ganha minha atenção. Viro a cabeça para a lateral, buscando por quem se aproxima. É um garçom trazendo vinho.
— Não existe mais nada que seja seu. Tudo em ti me pertence. — sua fala possessiva me assusta.
O homem serve Ragnar primeiro e, depois que o escocês sorve um pouco do líquido, faz um gesto sutil com a cabeça, permitindo que a minha taça seja servida.
Acompanho o vinho tinto preencher três dedos da taça, o cheiro frutado deixando seu rastro no ar.
— É o suficiente para você. Não quero que esteja bêbada em nossa primeira noite.
Me atrapalho com os talheres ao ouvir sua fala jocosa. O barulho dos utensílios colidindo atrai a atenção de todos. Meus dedos trêmulos tentam organizar os itens dispostos.
— Desculpe... — peço, ao perceber as cabeças voltadas em minha direção.
— Nervosa? Pensa neste momento?
Meus olhos se arregalam, estremeço.
— Não. Mas, como não tenho opção, engravide-me logo, para que eu me livre de você! — digo amarga.
Ragnar sorri, divertido com minha agonia. Jamais esquecerei que estou sendo punida por um erro que não cometi.
— Seu olhar está quente, menina. Não tente enganar um homem experiente como eu. Seus s***s estão rijos, os b***s despontando contra o tecido. Por baixo dessa mesa, suas coxas se apertam uma contra a outra, enquanto tenta disfarçar o que sente.
Oh, meu Deus! Ele está me lendo sem pausa.
— Vejo que aprendeu a falar. Esqueceu o seu dialeto de múmia. — zombo, tentando reverter o quadro em que sou espezinhada por esse homem que se acha dono do mundo.
O ruivo, dono de olhos azuis gelados e penetrantes, me olha com uma sombra pairando em sua face.
A conversa na mesa ao lado flui em um dialeto que não compreendo.
— Curiosa não seja, certamente ficará tentada a entender... e não poderá. — o infeliz diz, sarcástico, dominando suas feições.
A vergonha me invade.
— Je m’en bats les couilles… (estou cagando e andando...)
— Votre langage est rempli de mots indécents, madame Murdoch. (Seu linguajar é indecoroso, senhora Murdoch.)
Sequer consigo terminar meu desabafo em francês, crendo inocentemente que o escocês não entenderia. Mas a surpresa é que ele é fluente na língua. Seu olhar contém zombaria, e o canto de seus lábios se ergue brevemente.
Espeto um aspargo e levo à boca. Não tenho fome, mas tento me ocupar para desviar meus olhos de Ragnar. Não adianta muito: sinto seu olhar frio sobre mim enquanto engulo a comida. Minha garganta parece fechar; empurro a comida com um gole de vinho. Surpreendo-me com o gosto: é bom.
Ragnar ergue-se e deixa a mesa sem dar explicações. No fundo, agradeço. Longe de sua presença, consigo respirar — ato impossível com ele por perto.
O garçom se aproxima. Ergo a taça. Não arrisco falar, certa de que ficaríamos em impasse. Surpreendentemente, o rapaz entende meu gesto e serve mais vinho.
Levo a taça aos lábios, sorvendo um gole. Minha estratégia é simples: deixar que o álcool domine meus sentidos e apague a memória da consumação que está por vir.
Levo novamente a taça aos lábios. Contudo, desta vez, o líquido sequer molha a ponta da minha língua: a taça é retirada da minha mão.
Olho na direção de quem a tomou e vejo Ragnar. Recebo um olhar áspero, antes de vê-lo virar e beber o restante do vinho, secando minha taça.
— Beba água, Liliana. — empurra suavemente a taça com o indicador em minha direção.
— Você não manda em mim! — rebelo-me contra o ser c***l e vingativo.
— A água, Liliana. Agora! — o tom de voz de Ragnar muda para algo sombrio, fazendo meu estômago dar voltas de nervoso.
Ergo a mão trêmula, tomo a taça entre os dedos. Antes de fazer o que ordena, olho-o com a raiva transbordando. O líquido desce arranhando meu tubo digestivo. Nunca pensei que odiaria o dia do meu casamento. Em meus sonhos seria tudo diferente: sorrisos, beijos, valsa, bolo, chuva de arroz... e as carícias de uma noite.
O tempo corre, um a um dos Murdoch, retiram-se da tenda, saem sem dar-nos as devidas despedidas ou felicitações. Creio que seja melhor assim, não suportaria fingir simpatia num momento onde vejo podada o pouco domínio que tinha sobre mim. Minhas asas sequer conheceram o planar do voô.
Fico tensa quando me dou conta que resta apenas nós dois.
Meu Deus o que vem agora.
Ragnar se aproxima de mim depois de trocar algumas palavras com seus irmãos.
O homem ergue a mão em minha direção. Prendo a respiração.
_ P-prometa que não vai me machucar...- peço com a voz falhando. Meus olhos amedrontados mirando os dele.
Suas sobrancelhas franzem.
— Que tipo de julgo faz de mim? Oh, messa, não sou nenhum bárbaro. - seus olhos brilham em evidente ultraje por meu pedido .
Vacilante coloco minha mão sobre a de Ragna, ergo-me vagarosamente, tentando ganhar alguns minutos.
_ Há muito em minha terra, meus antepassados não faziam uso de adornos em pares quando contraiam enlaces, mas nessa época onde tudo se faz novo...- acompanho o movimento de sua mão direita, que entra no bolso da calça e retira uma caixinha de veludo azul escuro.
Ragna abre e lá está o belo par de alianças.
Meus olhos desviam para as duas geleiras magníficas.
_ Compartilho contigo, pela primeira vez em minha existência, esse elo. - estremeco quando retira um dos aros dourados e extravagantes, aperto meus lábios conforme sinto o seu toque em minha mão fria. Ragna desliza a aliança em meu anelar esquerdo. Símbolo que evidência que há alguém em minha vida pesa em meu dedo.
Chega a minha vez. Faço com meus olhos marejados.