Capítulo 1. O Príncipe Virou Sapo

1050 Words
4 de maio de 2015, Favela da Linha, Macaé — Onde ‘cê acha que ‘tá indo? Vou te matar! — O olhar raivoso me fitava com muito ódio, exatamente como eu me lembrava que ele o fez. Acordei suada de um sonho caótico. Olhei ao redor e estava no maldito barraco que eu muito mäl conhecia numa favela que nunca ouvi falar. Imediatamente, os olhos encheram de lágrimas. Alguns soluços quase me sufocaram, mas eu me sentei. Ainda tinha um telefone comigo. Os garotos que me ajudaram trocaram meu telefone velho. Ali, eu só tinha o número da minha tia. Minha mãe não fazia ideia do que estava ocorrendo comigo e, por sua idade, eu preferia deixar assim mesmo. “Já pedi e Helena vai falar com ele ainda hoje”, era a mensagem pendente que eu tinha da tia. Isso me foi um alívio, mas eu ainda estava apreensiva. Voltei ao Rio de Janeiro com uma mão na frente e outra atrás. Só o contato da família foi realmente útil para eu ter mínima dignidade ao chegar. A tia falou com um menino da favela ‘pra me dar a chance de não morrer de frio ou fome enquanto ela tentava me retornar ‘pra casa. Minha família estava bem longe. De Macaé a Realengo eram muitos quilômetros. Eu nem estava atualizada sobre as facções no Rio ‘pra entender em que terreno eu estava pisando. Helena, minha prima, era casada com o chefe de um morro por lá e a minha tia sugeriu falar com o genro que ela adorava para conseguir abrigo e proteção ‘pra mim — ela estava certa que ele ajudaria. A tia sempre falou bem dele. Naval era o vulgo e eu já sabia chamar Eric, amor de infância de Helena. Eles eram grandes amigos e, até onde sei, um filho foi o que fez eles se juntarem. Ele demonstrou hombridade ao assumir a criança, eu admito. Talvez fosse tão apaixonadinho quanto ela. Só de pensar na felicidade dela, eu me senti triste — talvez tenha sido inveja —, mas eu quase vivi um conto de fadas com o meu primeiro namorado. Isto é, até o príncipe virar sapo. Demorou cinco anos ‘pra máscara cair e eu estar lidando com o inferno na terra, perseguições, agressões, constantes ameaças... Eu dava aula e até meus alunos foram envolvidos nesse caos. Essa foi a gota d’água e eu decidi largar tudo, pedi ajuda ‘pra isso e saí, sem avisar ninguém. Sentada naquela velha cama que tinha cheiro de lugar desconhecido e olhando para as paredes de tinta descascada e reboco maltratado, eu me senti péssima. Respirei fundo por sucessivas vezes. Era perto do asfalto e, por isso, deu ‘pra ouvir os veículos da rodovia buzinando sem parar — um caos! Quase me lembrou São Paulo. Caminhei à janela enquanto prendendo o cabelo num rabö de cavalo. A tal rodovia estava engarrafada e dava ‘pra ver um caminhão tombado não muito longe. Alguns garotos armados observavam atentos. Mantinham certa distância, mas a óbvia chegada da polícia podia tornar aquela situação mais perigosa que o esperado por todos — os motoristas ou eu. — Acordou? — O garoto que me recebeu perguntou. Procurei e ele estava logo embaixo. Era novo, menos de dezoito, com certeza. — Bom dia. — Dia... — Eu lhe sorri, respirando fundo. — Vou pedir ‘pra alguém trazer algo ‘pro seu café. Infelizmente, não deu ‘pra arrumar nada mais ajeitado — deu de ombros, um pouco acanhado. — Sem problema. ‘Brigada! — Ela acordou, chefe. — Ele falou no rádio. Era sempre uma pena ver um garoto tão novo portando uma arma e se fingindo de gente grande. — ‘Tô indo. — Pude ouvir a resposta, mas ele começou a se afastar enquanto ainda falando. Não deu mais para entender e eu nem me esforcei. Entrei para me sentar na cama. O lugar era realmente um cubículo. Tinha aquele cômodo e um banheiro. Eu não podia reclamar da limpeza, mas não havia mais nada na casa. A única lâmpada que tinha estava no banheiro e eu a mantive acesa pela noite. Aproveitei para desligar. As roupas de cama e banho eram novas, eu abri assim que cheguei na noite anterior. Todo o resto também, escovas de dente, creme de cabelo... tudo novo. Tomei um banho rápido e estava penteando o cabelo quando um homem entrou, sem nem bater. Já tinha certa idade. Negrö, alto e bem forte. — Dia! — Ele cumprimentou. — B-bom dia. — Eu respirei fundo. Não podia simplesmente me acovardar naquela situação, mas não era nem um pouco confortável lidar com um armário armado na minha frente. — Já vão trazer algo ‘pra você comer. — Ele falou. — Soube que é parente do Naval, um amigo distante... verdade? — Ele fechou a porta enquanto falava. — Não sei. Minha prima é casada com ele. Mãe do filho dele, Miguel é o nome do menino — falei. Não era mentira, mas eu ainda dei detalhes só ‘pra ele não encrencar comigo de repente. Os olhos pareciam normais e ele não cheirava a droga nenhuma. Contudo, todo cuidado é pouco. — ‘Tendi. — Ele assentiu com a cabeça. — Qual é tua situação? — Ele se recostou na porta de braços cruzados, me olhando com seriedade. — Meu ex surtado. — Abaixei a cabeça. — Foi, de repente... Era um cara fodä e... ficou louco, eu acho. Não era mentira, mas não era toda a verdade. — De onde? — São Paulo. Zona Norte. — Eu o olhei. — Faccionado ou só bandidinho? — Não sei — menti. — Não costumo falar com Naval, mas tento contato com meu chefe. Se sua tia não conseguir a tempo, eu consigo falar com ele, tudo bem? — sorriu. — S-sim. ‘Brigada! — assenti com a cabeça. — Eu realmente agradeço sua ajuda! — As lágrimas logo começaram a cair e eu nem consegui controlar. Ele até me fez certa companhia, mas manteve aquela mesma distância e logo partiu. Fiquei sozinha no quarto, choramingando por erros passados. “Só quero que isso acabe!”, era só o que eu conseguia desejar enquanto tentando me recuperar.
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