A revelação

464 Words
Não sei como não percebi antes, devia estar ali na minha frente sempre, eu nunca vi, nunca dei conta, até aquele dia. Espantei-me, consegui disfarçar bem, mas espantei-me sim, e por pouco não bati o carro. Sim eu estava dirigindo. A avenida estava cheia, mais um daqueles engarrafamentos matinais. Todos indo para o trabalho, de má vontade como eu, quero crer. Mas divago, cada dia divago mais e mais. Ela estava ao meu lado, escutávamos música no carro, o som estava alto para abafar o barulho dos outros carros na rua, o céu ainda estava clareando, horário de verão... Foi então, que queimando um sinal vermelho, eu estava muito rápido para poder parar a tempo, ela passou sua mão, esquerda, na minha que displicentemente segurava o volante. Mão cheia de anéis, pulseiras, unhas pintadas de vermelho (insisto sempre para que ela as pinte dessa cor), e então eu vi aquelas marcas na sua mão, marcas parecidas com sardas, mas que na verdade são marcas de idade, de idade! Meu Deus! Nesse momento dei-me conta que ela estava envelhecendo, ficando velha! Nunca havia me incomodado, ou mesmo dado conta dos pés de galinha em volta dos olhos, os cabelos brancos, sempre pintados, a pele continuamente tratada com cremes hidratantes... Toda a nossa vida em comum passou diante de mim, junto com os outros carros que me fechavam, levando-me quase a chocar-me com um deles. A lividez que ela reparou em mim na hora creditei ao susto da freada brusca, acho até que cheguei a “cantar pneu” para disfarçar melhor. Ela tentou passar a mão em meu rosto, mas consegui disfarçar o repúdio colocando a cabeça para fora da janela do carro e xingar o motorista da frente, que não ouviu o meu desaforo. Completei o percurso até o trabalho praticamente mudo, tinha medo falar qualquer coisa, sim eu sabia que nada que dissesse seria bom, tinha medo de ofendê-la, de acusá-la de ficar velha, de sua falta de consideração comigo. Sentia-me ofendido e ridículo diante de tal reação. Enfim cheguei. Desci do carro, com certa aversão, que disfarcei bem, beijei-a rapidamente, e deixando de lado o elevador subi correndo pelas escadas, tal a ânsia de livrar-me de sua presença, sua lembrança, e chegar ao meu andar. Já em minha sala, liguei o computador e acorri ao banheiro, urgia ver-me ao espelho, tinha urgência disso. E lá estava eu, refletido no cristal, um velho de cabelos ralos e brancos, um rosto carcomido pelas rugas e infeliz, tão desgraçada e miseravelmente infeliz que no meu peito o coração parecia querer parar de bater... Então encostei minha cabeça no vidro frio e comecei a chorar. Desesperei-me ainda mais ao ver que chorava sozinho, pois minha imagem no espelho limitava-se a me olhar com reprovação e asco.
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