Estalagem

1916 Words
Capítulo-VI. Estalagem "Refúgio de anseios e sofrimentos, Trilha de seixos e pétalas, Neste lar acolhedor, Descubro serenidade e abrigo, A hospedagem do seu Coração é mais que um porto seguro, É o lugar onde me reencontro e me revelo, É a senda que me leva à verdadeira felicidade." Marrynna Tivemos uma briga mais cedo, e a raiva que senti do Cícero foi imensa. Como ele teve a audácia de me mandar lavar toda aquela louça? Foi uma falta de respeito que não consigo nem descrever. E quanto mais eu lavava, mais louça parecia aparecer, como se brotasse do chão, das paredes e até do teto da casa. E por falar em teto, por que ele não rebaixa essa cobertura? Fico olhando para as telhas, especialmente quando demoro a pegar no sono, com medo de algum inseto cair em cima de mim. Fiquei ainda mais irritada quando ele me pediu ajuda para consertar a cerca. Será que eu pareço alguém que sabe esticar arame no mato? De jeito nenhum! Nunca sequer segurei um martelo na vida! Sei que o Cícero saiu sozinho com todo o material, e não consegui me conter; corri até a porta da cozinha só para ver o movimento dele dentro da calça jeans surrada. Mordi o lábio inferior, cheia de pensamentos proibidos. Me encostei na parede ao lado da porta, e quando ele virou, me pegou no flagra. _ Droga! _ murmurei, irritada comigo mesma por não ter sido mais discreta. Olhei para a bagunça na mesa e decidi organizar tudo, assim ele não teria mais motivos para brigar comigo. Não sabia onde guardar o pão, então coloquei tudo na geladeira. Sinto uma atração pelo Cícero, mas essa vida simples no mato não me encanta nem um pouco. Quero voltar para o meu país, para a minha rotina, e encontrar um milionário que me sustente. Sinceramente, não me imagino lavando roupas ou cozinhando com um garoto sujo puxando a barra do meu vestido. Sou bonita, inteligente, culta e refinada, e mereço o melhor. Voltei para a sala e peguei meu celular mais uma vez, tentando falar com meu pai, mas o número estava desligado. Soltei um suspiro e deixei o celular em cima do sofá, pensando no que fazer, enquanto olhava para os pontos nos meus dedos, que pareciam uma lagarta magricela e peluda. Decidi explorar o quarto do Cícero. Nunca tinha feito isso antes, mas agora parecia uma boa ideia. A mobília era tão simples quanto o resto da casa: uma cômoda, uma mesa e um guarda-roupa antigo com um espelho oxidado em algumas partes. Fui até a cômoda e abri a primeira gaveta, meus olhos se arregalaram ao ver a quantidade de cuecas. Na segunda gaveta, havia ainda mais. _ Caramba! Para que tudo isso? _ pensei, pegando uma cueca vermelha e aproximando do nariz. Estava cheirosa. Peguei outra preta, e o tecido era macio ao toque. Corri até a porta, espiando para ver se alguém estava por perto. Não havia ninguém, então peguei a cueca e passei em meu pescoço. _ Uma só, ele não vai sentir falta. Retornei, fechei as gavetas e corri para a sala, escondendo a cueca dentro da fronha do travesseiro quando ouvi a voz do Cícero. Nunca fiquei tão nervosa! Me atrapalhei toda, mas consegui esconder a cueca antes que ele chegasse. Seu olhar desconfiado me atingiu como uma flecha. Abri um sorriso amarelo. _ É duro, e eu gosto dos moles... quer dizer macios. É isso, dos macios. Não sei o que aconteceu, mas uma onda de calor subiu pelo meu rosto. _ Você está toda vermelha! - ele comentou, e eu me levantei num pulo. _ Febre! Estou com febre, ainda não me recuperei da gripe! _ Então, vai tomar um antitérmico. _ Vou sim! Você viu que arrumei a mesa? - disse, cheia de orgulho. _ Vi, mas não varreu o chão e as migalhas de pão estão espalhadas. Você percebeu que os pássaros vêm aqui para comer isso? Senti meu ânimo murchar. _ Cícero, eu detesto vassouras, tenho nojo de pano de chão e baldes com aquela água suja. Que tal comprar um robô aspirador que limpe tudo sozinho? - sugeri. _ Marrynna, minha vida é bem diferente da sua, e se não percebeu, os luxos de antes não existem mais. _ Isso vai mudar quando eu voltar para o meu país. Vou procurar um bom partido. _ Tente achar outro emprego, mas não desista desse. Sua passagem não vai se pagar sozinha. Um sorriso surgiu em meu rosto quando ele foi até a cozinha, pegou uma garrafa de água e saiu pela porta. _ O que tem de gostoso, também tem de chato. ---- Então a noite chegou, e com ela uma ameaça. Eu tinha plena consciência de que não tinha o menor direito de me importar, mas, mesmo assim, a preocupação me consumia. Cícero se arrumava no quarto como se estivesse prestes a encontrar o rei da Inglaterra. E eu, espiando pela a******a da porta, apenas observava aquele desfile de vaidade rústica, com a expressão de quem não se importava com nada. Ele vestiu uma camisa azul-clara que, na minha opinião, era um verdadeiro desastre. Depois trocou por uma preta e meu coração correu uma marota sem a minha presença. Quando se virou e pegou a carteira e a chave da moto sem cima da cama, voltei correndo para a sala. Cícero surgiu todo perfumado, bonito e arrumado. O olhei dos pés a cabeça. — Vai sair ou vai espantar corvo na lavoura? — soltei, cruzando os braços. — Hein? — ele virou-se, confuso. — Com essa roupa, você tá parecendo um espantalho. Ele riu com desdém. — O que é feio pra uns, é bonito pra outros. Sua opinião não conta muito pra mim, Marrynna. Aquelas palavras doeram como se ele tivesse me empurrado de um penhasco. Dei uma risada sarcástica e me virei, morrendo de raiva. Se ele pensava que iria me deixar no meio dos matos para farrear por aí, ele não ia mesmo. — Vou fazer um sanduíche. Aqui o ego já tá tão inflado que não cabe mais nada. Fui até a cozinha, abrindo a geladeira com mais força do que o necessário. Peguei pão, queijo e, irritada comigo mesma, comecei a cortar o tomate. Queria apenas descarregar a frustração. Mas acabei exagerando: a faca escorregou e cortou a palma da minha mão. — Ai, caramba! — gritei, vendo o sangue escorrendo pelos dedos. — CÍCERO! Ele apareceu num piscar de olhos, os olhos arregalados. — O que aconteceu, menina?! — Cortei a mão! Tá doendo! Tem muito sangue, Cícero! — eu tremia, meu rosto ardendo. Ele não hesitou. Pegou o pano de prato mais próximo e pressionou contra o corte. — Segura firme! Como conseguiu fazer isso? _ Essa faca horrível! Pergunta pra ela! O corte ardia feito pimenta na língua. _ Vamos ter que ir ver alguém para ver se precisa de pontos. Lembrei logo do médico de animais. _ Médico de humanos, por favor! _ Vamos ter que ir ao posto do bairro. Não demorou para o peão me colocar na moto como se eu fosse uma boneca quebrada e acelerou em direção ao pronto-socorro de Itatiaiúçu. Lá, me costuraram como se eu fosse um pano velho. O médico fez uma cara feia ao ver o estrago. — Você vai precisar cuidar disso aqui, viu? Se infeccionar, vai te dar uma dor de cabeça. Mal sabia o médico que eu já tinha uma dor de cabeça de um metro e oitenta bem ao meu lado. Mal o médico terminou de falar, o celular de Cícero tocou. Olhei para o homem que se afastou para atender, mas ainda consegui ouvir o tom da voz de mulher. Meus nervos balançaram. — Cícero, você vai me dar bolo mesmo? Deixei de sair com minhas amigas pra ficar te esperando, viu? Ele coçou a nuca, sem jeito. — Aconteceu um imprevisto, minha hóspede se machucou, tive que trazê-la pro posto. — Quero te ver. Agora. Você não vai me fazer de palhaça. Quem era essa fulana? Era tudo o que a minha mente indagava. Cícero olhou pra mim, depois pros lados. — Tá bom. Eu vou aí. Mas não vou poder ficar muito tempo. Desligou e voltou com um tom que tentava ser neutro: — Vamos, Marrynna. Só preciso resolver uma coisa antes de voltarmos. Não discuti. Montei na garupa da moto e fiquei em silêncio, mas minha mente estava um turbilhão. Eu sabia exatamente pra onde ele estava indo. E também sabia que a raiva que sentia não era pelo machucado. A moto parou e eu engoli em seco. Uma mulher estava lá, parada na calçada, morena, com um vestido justo e um salto alto que me fez detestá-la em cinco segundos. Ela olhou de mim para Cícero, sorriu e se aproximou. — Oi, amor. — A maldita deu um beijo na boca do peão, bem na minha frente, como se eu fosse um mero espectador. Alguém que os dois não estavam nem aí para a existência, eu uma alemã com sangue Francês, com brasão e sobrenome. Uma mulher europeia. Senti a raiva borbulhar dentro de mim. Um impulso incontrolável me levou a beliscar as costas dele com toda a força que consegui. Cícero se afastou, fazendo uma careta e lançando um olhar por cima do ombro. Ele não gostou do beliscão e eu não gostei de vê-lo aos amassos com outra. p***a! Eu estou aqui! Cruzei os braços e desviei o olhar. A diaba com seu jeito de fingida, me lançou um “oi” meloso em minha direção. — Oi. — respondi, com o veneno escorrendo pelos lábios. Eles trocaram mais algumas palavras, marcaram um novo encontro, descobri que o nome da infeliz é Rafaela. — Quero passar um tempo a sós com você. — disse a oferecida e outro beijo aconteceu. Se eu tivesse algo nas mãos, teria jogado. Minha vontade era de gritar, não pude, engoli a raiva que desceu feito ou ouriço pela minha garganta. Assim que ela entrou, Cícero colocou a moto para andar. Meu corpo estava tenso como um pedaço de madeira. No meio do caminho, ele perguntou: — Você tá maluca, ruiva? Por que você me beliscou? — Se você quer beijar, lamparinar, abraçar, fazer qualquer coisa com a mulher, que faça longe de mim. Não sou obrigada a ser espectadora da sua sessão de amassos na garupa. Ele soltou uma risada nasal, irritado. — Você que estragou minha noite. — Estraguei? — virei o rosto para ele. — Você deixou de ir à faculdade só pra ver a mulher não é? — Não. Cancelaram as aulas. O prédio ficou sem energia, teve um problema no transformador. — Ele respondeu com impaciência. Fiz uma careta, engolindo a frustração. Chegamos à fazenda e ele seguiu direto para o quarto. Eu fui para o sofá, olhando para minha mão remendada. Os pontos estavam ali, como uma cicatriz do que eu mesma causei. Eu? Me machucar por causa de homem? Nunca imaginei. Mas lá estava eu. Cortada, costurada e com o coração todo em frangalhos. A verdade é que eu me incomodei, sim. E não fazia sentido. Eu não amava o Cícero. Pelo menos era o que eu dizia. Mas então, por que essa queimação interna quando ele beijava outra? Fechei os olhos. Respirei fundo. Talvez amanhã essa sensação passasse. Ou talvez, só talvez, ela fosse o início de algo que eu não queria admitir nem para mim mesma.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD