Gabriela narrando
Eu não sei como minhas pernas conseguiram me trazer até ali. Talvez fosse ódio. Talvez fosse desespero. Ou talvez fosse só o tipo de dor que arde tanto que empurra o corpo sozinho. Tudo que eu sabia era que, quando parei diante do salão decorado, meus joelhos quase cederam.
A festa de casamento de Walter e Flávia.
Meu marido.
Minha melhor amiga.
Os dois sorrindo enquanto brindavam como se eu tivesse sido apagada da história deles.
Eu sentia minha respiração falhar, como se o ar estivesse preso em algum lugar entre minha garganta e o peito. Cada gargalhada que eu ouvia lá dentro parecia um tapa. Um tapa que dizia: Você nunca existiu, Gabriela.
Eu me forcei a andar, escondida nas sombras. Eu não podia simplesmente entrar na frente de todo mundo. Não naquele estado — magra demais, machucada demais, destruída demais. Eu precisava de silêncio. Precisava de um lugar onde pudesse finalmente olhar Walter nos olhos e acabar com tudo.
Esperei por quase uma hora pra conseguir entrar no salão, onde tinha uma mulher na porta com uma prancheta olhando os nomes dos convidados. Ela saiu da porta e eu rapidamente corri sentindo muita dor na barriga. Eu suava frio por conta da dor, mas nada ia me parar. Eu ia me vingar deles custe o que custasse.
O corredor dos quartos estava escuro e silencioso. Abri a porta do quarto deles — meu estômago embrulhou ao ver as malas no canto, a cama arrumada com pétalas, o vestido de noiva pendurado na porta. Um vestido que foi usado por uma mulher que me chamava de irmã.
Senti a garganta fechar. Eu quase vomitei.
Mas então lembrei do sangue.
Do meu bebê.
Do meu corpo sendo descartado numa estrada como lixo.
E o ódio venceu o resto.
Fechei a porta atrás de mim. Apertei a faca no punho. Esperei.
O barulho da festa abafava quase tudo, mas eu reconheceria os passos dele em qualquer lugar. E quando ele se aproximou, meu coração bateu tão forte que pensei que fosse denunciar-me sozinha.
A maçaneta girou. A porta abriu.
Walter entrou.
Não sei de onde tirei força, mas avancei sem pensar. A lâmina brilhou rápido, eu mirei o peito dele, mirei acabar com ele ali, sem falha, sem hesitação.
Só que ele desviou.
Eu não vi a outra pessoa atrás dele.
Senti apenas a resistência da faca entrando em carne… mas não era a dele.
O grito que veio logo depois, não era do Walter.
Era a Flávia.
Quando meus olhos encontraram os dela, algo dentro de mim se rompeu. Ela caiu para trás, a mão pressionando o sangue que jorrava do abdômen, e eu fiquei paralisada por um segundo que pareceu uma eternidade.
Walter gritou meu nome — não de dor, mas de pânico, porque aquilo não estava no plano perfeito dele.
Eu ouvi vozes no corredor.
— Alguém gritou! Liga pra polícia!
Minha mente simplesmente… apagou.
O instinto assumiu.
Soltei a faca. Saí correndo. Nem sei por onde. Só sei que meus pés me levaram para fora do salão, atravessando carros, pessoas que já começavam a se virar para ver de onde vinha a confusão.
Eu só corria. Corria como se o ar tivesse se tornado um inimigo. Como se parar significasse morrer. Talvez significasse mesmo.
Eu não sei por quanto tempo fugi. Minutos? Horas? O Sangue voltou a escorrer por debaixo da minha blusa — os ferimentos que nunca cicatrizaram direito estavam rasgando de novo. Cada passo queimava. Cada respiração parecia abrir minhas costelas.
Mas nada doía mais do que a lembrança do olhar de Walter quando percebeu que eu estava viva.
Ódio.
Pânico.
E raiva porque eu tinha estragado a festa perfeita dele.
A cidade foi ficando para trás. Eu só percebi quando as luzes diminuíram e o chão virou terra batida. Meu corpo já não obedecia. Minhas mãos tremiam. Minha visão oscilava.
Foi então que sombras surgiram na minha frente — homens. Eu tentei parar, mas minhas pernas já não respondiam.
— ta achando que vai pra onde car.alho, para aí agora? — ouvi uma voz grossa r acho que ele apontou um fuziu pra mim.
Eu não consegui responder.
Outro se aproximou.
— Ela tá sangrando porr.a… chama o patrão.
Eu tentei correr, tentei me defender, tentei qualquer coisa, mas só consegui dar dois passos antes que tudo apagasse.
No último segundo antes de cair, senti braços me segurarem.
E o medo do walter me encontrar finalmente cedeu…
…para um vazio escuro onde nem dor conseguia entrar.
Quando a escuridão me engoliu, achei que seria o fim. Uma parte de mim até torceu para que fosse. Mas o destino nunca foi gentil comigo. Ele sempre preferiu me deixar viva o suficiente para sentir.
A primeira coisa que voltei a sentir foi o cheiro. Algo entre álcool barato e fumaça de cigarro. Depois veio uma ardência no lado do corpo. E, por fim, uma voz distante.
— Ela tá acordando…
Minha cabeça parecia flutuar num mar grosso. Abri os olhos apenas um pouco, o suficiente para ver borrões. Luz amarela, fraca. Uma parede descascada. Som de rádio velho tocando alguma música sertaneja desafinada.
Tentei me mexer. Um gemido escapou da minha garganta.
— aaaaah.
Eu queria dizer que não precisava da ajuda.
Queria levantar.
Queria sumir.
Mas meu corpo não obedecia mais.
Não tinha mais forças.
Tudo que sobrou foi o mesmo vazio que me acompanhou desde a noite em que meu bebê morreu.
Aquele vazio me puxou novamente para dentro.
E eu afundei sem resistir, porque escuridão e vazio era tudo o que me sobrava.