Capítulo 2
Beatriz narrando :
Nem sempre foi assim.
Antes de tudo isso, do término, do atropelamento, do choro escondido no travesseiro, eu era só uma garota simples do interior de Minas, criada num sítio cercado de montanha, cheiro de café passado na hora e galinha ciscando no quintal.
Meus pais sempre foram trabalhadores. Gente de mão calejada, coração mole e fé inabalável. Cresci com o som do rádio ligado na cozinha e o barulho do fogão à lenha estalando de fundo. Era uma vida simples, mas cheia de amor.
Terminei o ensino médio em uma escola pública pequenininha, com professores que viravam amigos e provas feitas à mão. Mas, mesmo com tanto carinho naquele cantinho do mundo, eu sentia que precisava mais. Tinha sede de futuro.
Aos dezoito anos, com a benção dos meus pais e uma mala surrada na mão, vim tentar a sorte em São Paulo. Uma cidade que, pra mim, parecia outro planeta..Arrumei um canto pra morar dividindo um apartamento minúsculo com a Patricia, minha amiga de infância, que já tinha vindo um ano antes. Era um quarto e sala apertado, com cozinha americana e um ventilador barulhento que nos fazia companhia nas noites de calor.
O começo foi duro. Muito.
A saudade dos meus pais, do cheiro da terra molhada, da comida caseira da minha mãe, tudo me pesava. Teve dia que chorei no banheiro pra ninguém ouvir, comendo miojo e tentando acreditar que ia dar certo.
E um dia deu. Depois de meses de currículo impresso na mochila, metrô lotado e entrevistas que me deixavam em frangalhos, consegui um emprego fixo. Fui contratada como secretária na Ferrarezi Group, uma das maiores holdings de investimentos do país.
O CEO era um homem sério, exigente, quase uma lenda dentro da empresa.
Arthur Vasconcellos.
No começo, achei que não ia durar nem um mês. Ele falava pouco, andava com pressa e olhava como se enxergasse até os pensamentos da gente. Mas aos poucos, fui pegando o jeito. Aprendi o que ele gostava, como organizava a agenda, como preferia o café. Passei a antecipar as necessidades dele antes mesmo que ele pedisse.
E mesmo invisível aos olhos de muita gente naquele prédio de vidro e mármore, fui conquistando meu espaço.
Pena que, ao mesmo tempo em que a carreira começava a andar, meu coração já tava caminhando pro abismo. Porque foi nessa fase que eu conheci o Vinícius. E com ele, eu achei que tava vivendo um conto de fadas.
Mas contos de fadas mentem.
E a realidade sabe ser c***l.
Conheci o Vinícius num sábado qualquer, no mercado perto de casa. Eu tava com a cesta de compras equilibrada no braço, tentando escolher o molho de tomate mais barato da prateleira, quando ele esbarrou em mim, derrubando quase tudo no chão. Lembro que me abaixei apressada, pedindo desculpa mesmo sem culpa, toda atrapalhada, e ele riu. Um riso bonito, leve e diferente.
— Foi m*l — ele disse, pegando as latas pra mim. — Mas se serve de consolo, você tem um ótimo gosto pra molho.
Sorri, tímida. Eu nunca soube lidar bem com elogios, ainda mais vindo de um homem tão bonito. Vinícius era alto, cabelo castanho bem cortado, barba por fazer, e um charme despretensioso que fazia a gente esquecer do mundo por uns segundos.
Trocamos algumas palavras ali mesmo, no meio da sessão de massas. Ele fez piada com meu carrinho cheio de produtos de marca genérica e eu ri, nervosa. No final, insistiu em pagar minhas compras. Eu recusei, claro. Mas ele não aceitou um não.
— Então deixa eu pelo menos te pagar um café ali fora. Vai ser minha penitência pelo esbarrão — ele disse, com aquele sorriso fácil.
Aceitei.
E foi assim que começou.
Um café virou um jantar. Um jantar virou uma troca de mensagens diárias. E quando percebi, ele já fazia parte da minha rotina, do meu celular, da minha cama e da minha vida.
Vinícius me fazia rir. Me ouvia. Me fazia sentir vista. E pela primeira vez, eu comecei a acreditar que, talvez, alguém pudesse me amar do jeito que eu era. Com as curvas, com os medos, com as inseguranças que eu escondia por trás dos sorrisos.
No começo, ele parecia encantado por mim. Dizia que adorava meu jeito, minha risada alta, minha sinceridade meio bruta. Me chamava de minha menina e fazia planos de casa, filhos, viagens. Era bonito sonhar com ele.
E eu, boba, sonhei.
Sonhei tanto que deixei de ver os sinais.
As críticas sutis.
Os olhares comparativos.
Os toques diminuindo.
Sempre fui cheinha.
Desde criança, meu corpo nunca seguiu aquele padrão que a sociedade empurra goela abaixo. Enquanto as meninas da escola usavam calça 36, eu já usava 42 no ensino médio.
No começo, doía. Principalmente quando as pessoas achavam que tinham o direito de comentar, como se meu corpo fosse assunto público. Mas com o tempo, fui aprendendo a lidar. Me vestia bem, fazia minhas makes, e mantinha o sorriso no rosto. Até porque minha autoestima sempre foi maior do que a balança.
Mas, de uns tempos pra cá, as coisas mudaram.
Com a correria do trabalho, o estresse, as noites m*l dormidas e a ansiedade que eu não admitia pra ninguém, acabei engordando mais. A alimentação foi ficando de lado, a academia virou plano cancelado, e quando percebi, eu já tava usando 48.
Hoje, com 21 anos, é esse o número que estampa as etiquetas das minhas roupas. E quer saber? Isso não me faz menos mulher, menos bonita ou menos digna de amor.
Mas parece que nem todo mundo pensa assim.
Vinícius, por exemplo, começou a me olhar diferente. Como se eu fosse ficando menos a cada grama a mais. Como se o carinho dele tivesse validade na balança.
E o pior? Eu comecei a acreditar nisso também.
Mas eu seria hipócrita se dissesse que tudo isso nunca me afetou.
Claro que afetou.
Afetou tanto que eu comecei a fazer loucuras calada, sozinha, como se o meu corpo fosse uma batalha que eu precisava vencer a qualquer custo.
Tentei de tudo.
Dieta da sopa, do ovo, do jejum intermitente, do shake que prometia milagres. Comprei remédio clandestino pela internet, daqueles que fazem o coração disparar, a cabeça girar, o estômago embrulhar. Teve mês que eu só jantava chá com bolacha de água e sal.
Tudo pra quê?
Pra tentar caber num vestido número 42.
Pra ouvir do Vinícius um você tá linda, sem aquela pausa fria antes da frase.
Lembro como se fosse ontem o dia em que passei m*l no trabalho.
Era uma segunda-feira corrida, o escritório a mil, e eu com o estômago vazio desde o dia anterior. Levantei pra levar um documento pro Arthur e, tudo ficou escuro.
Apaguei no corredor.
Fui socorrida por uma colega do financeiro e acordei com uma bolsa de água gelada na testa e um bombom sendo colocado na minha mão.
— Tua pressão despencou — disseram.
Mas ninguém sabia que era culpa da dieta maluca que eu tava fazendo escondido.
Eu sorria, dizia que era só cansaço, e seguia.
Porque o casamento tava chegando, o vestido tava apertado, e eu achava que precisava ser menos pra merecer mais.
Hoje, quando olho pra trás, me dá vontade de abraçar aquela Beatriz e dizer:
Você já é suficiente. Do jeitinho que é.
Mas na época, tudo que eu via era peso na balança, na consciência e no peito.
Continua .....