Cap 1

2813 Words
Léo Eu via ela passando pela rua, vestida com o uniforme da escola, com os livros nas mãos e com cara de marrenta, como pode? A menina não tinha nem idade para ser marrenta e eu sabia que ela não era, só o rosto que mostrava mesmo A Fernanda sempre foi aquelas meninas que chamam a atenção sabe, mas não por fazer essas gracinhas de criança, mas porque ela sempre foi amorosa com as pessoas. Morava só com o pai, se eu me lembro bem, ela me disse que a mãe dela tinha virado uma estrela, coisa de morte né, é assim que os pais contam para os filhos que algum ente querido já não está mais aqui no nosso mundo, mas não sei ao certo o motivo dela ter morrido O senhor Samuel era seu pai, pensa num cara bacana, marido de aluguel, sabia fazer as coisas com perfeição, gostava mesmo de ajudar as pessoas, de ver o sorriso no rosto delas e saber que foi por conta do seu trabalho simples. Homem honesto que não media esforço para dar tudo o que a filha precisasse Não coisa de luxo, nada disso, mesmo porque, a Fernanda era diferente, sempre foi, eu via isso nas nossas brincadeiras de criança. Na verdade, a criança era ela, cinco anos de diferença em relação a mim, eu mais fingia gostar daquelas brincadeiras só para poder passar tempo com aquela menina Se ela não passasse tanto tempo assim no sol escaldante do Rio de Janeiro, eu podia até dizer que a pele dela seria num tom branco, mas não, como dá para ficar com pele cor de leite com esse sol maravilhoso que Deus deu? Não, a pele dela era um bronzeado, só que claro, cabelo castanho, mas não escuro não e cabelo encaracolado Na verdade era assim quando a gente era criança né, porque agora mesmo, eu nem sei mais, um dia tá liso, outro encaracolado, outro liso junto com encaracolado, sei lá, só sei que todo dia tá bonito Ali, vendo ela de longe, passar todos os dias, indo e voltando da escola e depois no mercado, na farmácia, naquela pracinha que fica na frente da pracinha, a que ela faz bico aos finais de semana, eu consigo me lembrar de cada momento que a gente passou junto Todos os dias, era assim a nossa rotina, todos dias eu ia lá na sua casa e a gente passava quase que a tarde inteira conversando e brincando e jogando vídeo game, minha mãe até tinha trabalho me levar para casa, eu gostava mesmo de ficar ali. O tio Samuca fazia uns lanches daora, eu amava mesmo Mas aí, a adolescência foi chegando e você sabe né? Vida de filho de dono do morro sempre tem propósito, o meu era me preparar para assumir o comando do Vidigal Foi num dia qualquer sabe , num desses que a gente não dá importância nenhuma que a coisa realmente aconteceu, quando o meu destino decidiu se cruzar com o dela de vez, aquele ali foi o começo da nossa história, não aquela que neguim ia poder meter o bedelho, mas da história raiz mesmo Dono de morro também ama, também faz loucura por uma mulher, também sente na pele que pode transformar o mundo por conta do carinho de uma n**a, mesmo que tenha um morro pra cuidar e uma comunidade pra defender Ouvir a zoeira de longe, não tinha como. Ela tinha ido buscar o seu pai, no ponto de ônibus de fora do morro, não era muito longe, só que também não era muito perto, ninguém queria correr o risco de ficar muito perto do Vidigal nem essas empresas terceirizadas, mas ela fez isso, como de costume e também, como não podia faltar na minha rotina, eu tava lá, esperando por ela, sem ninguém perceber como eu sempre fazia.  Stalkear, sabe o que é isso mermão? É perseguir mano, viver uma vida de perseguição e aquilo ali tinha virado a minha rotina, o fôlego da minha vida, aquilo que movia a roda do meu coração, eu stalkeava a mina mermo, não conseguia ficar longe da Fernanda, eu nunca consegui Fernanda... Ela tinha se tornado um motivo do meu viver, eu nunca esqueci aquilo que eu senti por ela, quando eu dei o meu primeiro beijo, quando consegui tocar pela primeira vez naquela menina, mas sem malícia. Nunca esqueci quando eu senti aqueles lábios molhados, uma sensação tão estranha passou no meu corpo, eu curti uma eletricidade, sabe? Eu já tinha escutado isso de algumas pessoas, mas não em um adolescente, eu nunca pensei que um adolescente poderia sentir isso, mas eu senti, eu senti meu corpo todo tremendo por dentro, mesmo que por fora ela não percebesse, foi numa brincadeira boba, aquela salada de frutas, lembra quando a pessoa perdia e a outra podia pedir uma coisa? Eu pedi um beijo, ela me deu de um jeito tão inocente. Foi a partir daquele dia que o meu coração. decidiu acomodar o nome da Fernanda ali.  Eu me lembro também da época que a gente se separou.  Eu tinha nascido para ser o Dono do Morro, eu fui treinado pra isso, não dava para viver uma vida sem novidade, como a vida que ela queria, que ela sonhava. A menina, pro resto do mundo, era só a amiga de infância e meu pai não se importou com aquele sentimento de criança.  Adolescência os amigos mudam - ele dizia  Eu fui para o lado da bandidagem, ela foi para o lado do carisma, foi estudar, correr atrás dos seus sonhos, mesmo que ela não conseguisse conquistar todos.  Eu me lembro de passar pela rua sabe, com aquele meu grupo de filhos de bandido do Morro, os que estavam aprendendo as coisas visões mais estratégicas pra que quando chegasse essa hora, a gente pudesse e soubesse comandar a bagaça Eu passava por ela e ela já fingia que não me via. A mandada sempre disse que não queria ficar perto de bandido. Ela sentia uma coisa r**m.  Quando ela completou 13 anos eu completei 18 e ainda assim, eu não conseguia tirar aquela menina da minha cabeça, só que eu também não me aproximava, sabia que a Fernanda era criança demais fora que eu tinha que respeitar a decisão dela né mermão. Coisa de louco mesmo, a mina era um adulto no corpo de uma criança, ela sabia pensar em coisa que muitos adultos não sabiam, acho que era a vida sofrida que ela tinha sabe, a falta que a mamãe fazia.  Todos os dias eu ficava ali escondido naquela praça, eu via ela subir e descer as ruas e depois, mudava a minha posição, ficava na entrada do Morro vendo ela entrar e sair. Eu sabia toda a rotina da Fernanda, até tentei parar um pouco viver a minha vida, esconder no fundo do meu coração o que eu sentia por aquela menina, eu não podia alimentar um sentimento por uma criança, mas nunca consegui, nunca mesmo Achei até que se não falasse mais no nome dela, se não passasse mais pelo mesmo caminho, eu ia conseguir esquecer, mas como? Do nada eu me pegava no mesmo lugar, esperando a menina mulher passar e meu coração errar as batidas, dentro de mim eu ainda tinha a esperança de que a Fernanda me olhasse de um jeito diferente, não visse o bandido conhecido como Léo e sim o Leonardo, o garoto que era capaz de fazer absolutamente tudo por ela Era o meu melhor programa, eu me manter ali escondido e fitando cada passo dela, na surdina  Na verdade, esse era o único programa que me importava Eu não me lembro de gostar de sair, até de gostar dos bailes sabe, eu fazia aquilo mesmo por obrigação, marcava a minha presença, o filho do morro tinha que saber se impor, mas não me importava, a minha alegria não estava lá. Eu aprendi as coisas de morro, porque eu sabia que não tinha outra escolha, eu tinha nascido para aquilo então, fazer o quê, mas a eu soube dividir minha vida entre isso e sonhar com o meu amor impossível de longe. Estranho sabe que eu sempre escutei os amigos do meu pai falando de mulheres de um jeito muito estranho, bem putaço mesmo, vulgar pra carai, como se elas fossem objetos, era cada apelido que saía ali daquelas conversas Meu pai o meu pai mesmo falava "filho, você tem que pegar todas as minas, é isso que dono de morro faz, você tem que fazer a sua fama assim, tem que ser grande, tem que ser mais atirado, fazer destaque, aqui quem manda é tu e todo mundo tem que viver na base do respeito", mas eu não queria nenhuma delas, das minas que eles chamavam de marmita, mas não vou negar que uma ou outra eu acabei pegando Era em dia de baile que elas apareciam, mina atrás de mina se esfregando no meu corpo sem se importar com o dia de amanhã e eu só pensava na Fernanda, aquela menininha de 13 anos que eu não podia nem chegar perto.  Quando eu fiz 20, ela fez 15 e o corpo dela já chamava atenção de vários garotos. Nossa, quantos Gavião eu tive que meter o pé, às escondidas, lógico, e ainda falava para eles não abrir o bico porque se abrir se ia ser pior.  Mas foram várias canelada, braços quebrados e o carai a quatro, tantos olhos roxos que eu nem consigo contar nos dedos das duas mãos, tudo por conta da Fernanda.  Teve uma época que o Samuca, o pai dela, não conseguia emprego de jeito nenhum, esse povo da zona sul tem preconceito de pessoal da comunidade e daí, o cara acabou sofrendo com os nariz empinado  Eu fiz o pessoal do Morro só pedir marido de aluguel ali, aquele número de casa, bem específico, ajudei sem ele saber, até cheguei pagar conserto pra gente que m*l conhecia ali no morro, tudo pra conseguir levar um pouco de dignidade pra mesa da Fernanda, mas tudo na escondida também, ela nunca ia aceitar dinheiro vindo da minha mão, pra ela, eu tinha muito virado só mais um bandido., passava longe do seu amigo de infância Daí, quando ela fez 18 anos, conseguiu um emprego no mercadinho, ali comunidade mesmo, fora aquele bico que ela fazia aos finais de semana na loja da tia Neuza, a de roupas. Aquele ali era dia de semana, emprego fixo no mercadinho do seu Itamar Eu fazia questão de ir lá todo dia. Nem que fosse para comprar uma bala, um negócio nada a ver, nem que fosse para eu dar as coisas por vizinho, mas ia todos os dias. O sorriso dela... ela tentava disfarçar, mas eu via ela olhando para mim de r**o de olho, prestando atenção não no dono do morro, mas no Leonardo mesmo A bicha até que tentava, mas não conseguia disfarçar, e vô te contá mermão, aquilo alegrava meu coração, só que mesmo assim, eu sabia que não podia chegar perto dela.  Dizem que o destino de duas almas gêmeas é traçado em outras vidas, então, se fosse para ela ser minha, ela ia ser Mas naquele dia ela foi buscar o pai dela lá no ponto de ônibus e eu lá, no mesmo lugar, tava olhando a situação, escondido e vi quando um carro de samango passou à espreita, uma viatura com Highlight ligado. A Fernanda e o Samuca, o jeito carinhoso que todo mundo da comunidade chamava ele, não repararam naquilo, mas eu sim, eu vi A gente conhece, sabe quando quando tromba de frente com gente r**m, eu já tava ligado que alguma coisa tinha saído meio torto naquela volta que o carro fez A viatura foi e voltou, eu não tava muito longe do pé do morro, então pude ver de camarote. Os filha da p**a se atreveram a parar, chegaram perto dos dois ali e colocaram eles contra a parede, pra revistar e tudo Já viu gente de bem tendo que passar por batida de samango? Pois é, o desespero fica estampado no rosto antes mesmo de começar o toque. Eu tava vendo de longe, o meu sangue pulsava, meu coração batia acelerado, tava com uma raiva, queria meter bala de fuzil.  Mas fiquei na minha, ia chamar muita a atenção, fora ela nunca aceitaria isso. No mesmo momento que eu pegasse o meu cano e acertasse a bala na cabeça daqueles samango, eu também estaria dando tiro do meio do meio do meu coração, bem no lugarzinho onde tava escrito o nome da Fernanda. Ela nunca mais ia olhar na minha cara Só que eu também vi aqueles filha da p**a colocando os pacotes de droga no bolsa do Samuca. Ele nem percebeu, cara honesto do caramba, nunca pensou que aquilo podia acontecer, mas eu vi, não foi coisa de duvidar não, eu vi mesmo  Porra, meu coração doeu velho. Doeu para carai, na hora que eu vi a lágrima escorrendo no rosto daquele Senhor. Jamais, essa era a palavra certa. Ele nunca mexeu com isso a vida, essas coisas erradas sabe, só sabia falar pra filha dele, filha, "fica longe de bandido, isso não é vida. A gente tem vida boa quando tá na malandragem, mas é só no começo, é dinheiro atrás de dinheiro, mas o coração sempre fica apertado. Como que eu ia ficar aqui dentro de casa? E o medo de perder a pessoa que ama por causa de uma bala perdida ou de uma invasão ou de inimigo que, sei lá, acorda de manhã e fala "hoje é dia de matar aquele dono de Morro". Fica longe de bandido, minha filha, isso não é vida." Eu vi a lágrima escorrendo no olho daquele Senhor, eu vi o desespero dele na hora que o samango falou, no meio de uma risada sarcástica, que tava na hora do "velho" ir pra delegacia, tava na hora de responder pelos bagulho que os caras que achavam os fodão, "encontraram" camuflado na roupa surrada do Samuca Mermão, como pode? Esses caras enchem a boca pra falar que são melhores que a gente, mas faz cara gracinha sem graça, porque aquilo foi só por diversão, os caras não tavam com nada pra fazer e decidiram f***r com a vida do Samuca Eu não aguentei ver o rostinho da Fernanda ali, no desespero, ela perdeu até o jeito marrento dela ali naquela acusação Sacanagem mano, aquilo sim foi sacanagem Na mesma hora, eu pedi pro menor interceptar a frequência do radinho da polícia. E o companheiro do samango percebeu que alguma coisa diferente tava acontecendo na hora que escutou voz bandido saindo em transmissão restrita  Foi meu coração que pediu para fazer aquilo, eu não podia perder a Fernanda. Foi no desespero, eu tinha que fazer alguma coisa e ia fazer qualquer coisa, meu coração mandava, não conseguia fugir.  Eu não pensei, eu realmente não pensei no que ia acontecer com a comunidade se não tivesse mais o Léo pra tomar conta do morro, eu só pensei em salvar aquela menina daquele sofrimento, a minha Fernanda, a menina que era dona do meu pensamento era e do meu coração também, eu só não falava pro mundão A loucura me tomou léque, ande já se viu dono de morro não pensar duas vezes pra correr atrás de r**o de saia? Onde já se viu dono de morro não pegar o radinho pra chamar os menor da contenção e meter o louco ali mesmo? Onde já se viu dono de morro, ao invés de impor todo o seu poder de fogo, baixar a bola e tentar fazer acordo com samango só por conta de um olhar diferente Porra, loucura mesmo, mas eu não pensei Passei mensagem naquela frequência, e recebi um sinal no highlights, só pra confirmar que o acordo tava fechado. Na mesma hora que o Samuca e a Fernanda passaram pela contenção do morro e desapareceram naquelas ruelas, eu fiquei a vista e me entreguei.  Eles iam me levar no lugar de seu Samuel, o que quero uma noite para mim dentro daquele xilindró em troca do sossego da minha mulher? Mesmo ela não sabendo que era minha, que no escondido, era a minha fiel e que eu parava a minha vida pra viver a dela, não era nada. Eu tava disposto a fazer tudo em troca do sossego da minha menina e além do mais eu tinha dinheiro para dar e vender, eu não sabia nem em que gastar. Não me importava em dar uma boa quantia pra aqueles samangos para poder sair no dia seguinte e foi isso que eu fiz. Uma noite pelo descanso da minha pequena ali, ao longe. Ela nunca ia ficar sabendo do que eu fiz ou pelo menos era o que eu pensava
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