POV Dante Mancuso
O vento cortava o terraço do prédio como navalha. Um sussurro gelado da madrugada que ainda não sabia se era noite ou dia. O céu acima de Roma travava sua própria guerra silenciosa entre a luz e a escuridão — o sol ameaçava nascer no horizonte, tingindo as nuvens de um laranja pálido, como sangue diluído em água suja.
Fiquei ali parado, mãos nos bolsos do casaco preto, sentindo o peso do concreto sob meus pés e o mundo em movimento sob minhas decisões.
A vista era ampla. Imponente. De onde eu estava, era possível ver a cidade acordando, as luzes se apagando lentamente como almas que se resignam à claridade. Roma,minha cidade. Cada pedra carregava minha história. Cada sombra, uma cicatriz.
Mas eu não estava ali para admirar Roma.
Meus olhos estavam fixos no ponto mais distante do horizonte, como se, de alguma forma, conseguissem ver além do mar, além do Atlântico. Como se pudessem atravessar continentes, aviões, fronteiras... e pousar nela.
Catarina.
Sabia que estava viva. E mais do que isso, ainda sabia lutar.
Não era o tipo de mulher que cai fácil. Nunca foi.
A prova estava na cena que presenciamos poucos minutos atrás. Massimo e eu assistimos pela tela ao vivo,nossos homens caírem feito moscas na armadilha que ela preparou com precisão. Como uma orquestra silenciosa regida pela raiva. Eles acharam que a tinham encurralado. Idiotas. Só perceberam que estavam mortos quando já sangravam.
Ela era inteligente. Fria. Implacável.
Mas mesmo as mulheres mais inteligentes têm limites. E os dela, só eu conseguia enxergar. Só eu sabia exatamente onde terminava a força e começava o medo. Onde o orgulho disfarçava a dor. Onde a raiva escondia o amor.
Porém, eu tinha um problema. Catarina estava em Nova York e eu estava em Roma, mas isso me detinha. Nem nunca deteria.
Atrás de mim, a porta do terraço se abriu com um rangido abafado. Senti a presença antes mesmo de ouvir os passos. Reconheci o som do paletó barato roçando o tecido do corpo. Era um dos meus. Um dos associados subiu até o terraço. O cara parou a alguns metros.
— Don Mancuso — disse, com aquela formalidade ensaiada dos que ainda temem errar no vocativo. — Está tudo bem?
Me virei devagar. O vento bagunçava meu cabelo, a luz fraca desenhava sombras fundas sob meus olhos. Eu devia parecer exausto. E estava. Mas não era o tipo de cansaço que o sono cura.
— Prepare o jatinho — ordenei, seco.
Ele arqueou as sobrancelhas.
— Qual o destino, senhor?
— Nova York.
O silêncio dele durou mais que o necessário. Ele hesitou. E quando alguém hesita na minha frente, significa que está prestes a me dar uma notícia que não quer dar.
— Senhor... — ele pigarreou — os voos pra lá estão todos suspensos. O espaço aéreo está fechado por causa da tempestade. Nenhuma aeronave entra ou sai de lá até segunda ordem.
Me virei de volta pro horizonte. As nuvens pareciam uma muralha. O sol ainda não tinha força suficiente para vencê-las.
Impossível? Pra um homem comum, talvez, mas eu sou Dante Mancuso.
É o meu nome que sussurram nas prisões de Palermo, que circula nas planilhas da Interpol, que ecoa nas ruas de Nápoles com a reverência de um título divino ou a maldição de um demônio.
Se o céu não abre... eu abro caminho pela terra. Ou pelo inferno, se for preciso.
Me virei de volta para ele, os olhos fixos nos dele.
— Então prepare um carro.
Ele assentiu, sumindo escada abaixo sem mais uma palavra.
Eu fiquei. Mais um segundo. Talvez dois.
Depois tirei o telefone do bolso. Havia apenas um nome a ser chamado nesse momento.
Matteo.
Meu irmão. O homem que resolve problemas antes que eles se tornem manchetes.
No primeiro toque, ele atendeu.
— Fala.
— Preciso de um Falcon 7X — disse, direto. — Com autorização especial de voo para os Estados Unidos. E preciso de um slot de decolagem num país onde as regras sejam… mais flexíveis.
Do outro lado da linha, Matteo não perguntou por quê. Ele nunca pergunta. Porque ele sempre sabe.
— Considere feito — respondeu. E desligou.
Era isso. Sem mais.
Mateo nunca falha.
O telefone vibrou no bolso novamente.
Mensagem de Matteo.
"Nice."
Sorri.
Era exatamente o que eu precisava.
Guardei o celular, respirei fundo e me permiti um último olhar para Roma. Sabia que quando voltasse, tudo estaria diferente.
Desci os degraus do terraço sentindo o peso de cada decisão, de cada segundo desperdiçado. Cada minuto longe dela era um minuto de risco. De dano. De perda.
Cheguei à garagem. O carro preto já estava esperando. O motorista — um dos bons, dos leais — abriu a porta sem dizer nada. Entrei. Dei a ordem:
— Leve-me até Nice. Rápido.
Nice era a chave. A pista privada, o contato de Matteo com o governo francês e a ausência de escrúpulos com o dinheiro certo. Dali, o Falcon poderia decolar. Com ou sem autorização.
A estrada devorava o asfalto. O céu começou a clarear, mas a tempestade ainda era uma muralha que se erguia entre mim e ela. Enquanto o carro acelerava, eu repassava tudo que sabíamos. Tudo que Catarina deixara para trás. As pistas que nos levaram até a verdade: ela estava viva.
E não apenas viva, ela estava lutando.
Ela era assim. Uma mulher feita de veneno e flor. Capaz de matar com um beijo e salvar com uma mentira bem contada. E mesmo assim, mesmo com tudo... ela era minha.
Meu erro foi deixá-la ir. Meu castigo foi vê-la desaparecer sem poder fazer nada.
Mas essa história ainda não tinha fim.
E não terminaria com ela em um quarto cercado de inimigos, com medo, sozinha, sendo morta por Don Miguel.
A estrada era longa. As horas se arrastavam. Mas cada quilômetro era um passo mais perto dela.
Quando o telefone vibrou novamente, a tela mostrou apenas uma palavra:
MATTEO.
Atendi.
— O Falcon vai te esperar em Nice. Slot garantido em Tangier, Marrocos. De lá, você cruza pelo corredor diplomático até Boston. Em três horas, estará em solo americano.
Assenti, mesmo que ele não pudesse ver.
— E Catarina? Alguma novidade?
Houve uma pausa.
— Só rumores. Alguns dizem que ela está em um hospital, outros na casa do tal Adam Scott.
Fechei os olhos. Uma única respiração pesada escapou de mim.
Viva.
Ela estava viva.
— Vai preparando o chão, Matteo — murmurei. — Porque quando eu pousar lá, vai chover sangue.
Ele riu. Aquele riso breve, sem humor.
— Como nos velhos tempos, irmão.
Desliguei. A estrada seguia. O céu clareava. Mas dentro de mim, era noite cerrada.
Até ver o rosto dela.
Até ouvir sua voz.
Até sentir aquele toque de novo.
Eu não ia descansar. Não ia parar. Nem o oceano, nem o sistema aéreo, nem as leis dos homens seriam capazes de me impedir.
Porque eu sou Dante Mancuso.