Adam Scott
Acordei antes do amanhecer, com os olhos úmidos.
Não era suor. Não era alergia. Era lágrima mesmo. Das boas.
Tive um sonho. Um sonho lindo. Eu e ela. Catarina. Nós três.
Uma família.
Quis voltar pro sonho. Mergulhar nele como quem se joga num lago morno no meio do verão. Mas então, um som me arrancou de lá. Algo caiu no chão da cozinha. Um barulho seco seguido de uma voz feminina murmurando:
— Merda…
Ergui a cabeça devagar, como se meu corpo ainda quisesse resistir à ideia de que aquilo era realidade.
E então a vi.
Catarina.
De costas, atravessando a cozinha.
Por um momento, a ideia de que tudo ainda era um sonho me confortou. Eu tinha dormido no sofá tantas vezes nos últimos meses — noites de trabalho, insônia, discussões evitadas. Às vezes, minha mente inventava coisas. Mas isso… isso parecia real demais. E eu estava acordado. Completamente.
Me levantei, os músculos reclamando do sofá estreito. Atravessei a sala em silêncio e parei na soleira da cozinha.
Ela estava lá.
Real.
Cabelos bagunçados, soltos, daquele jeito que só ficavam quando ela dormia profundamente. Usava uma das minhas camisas — azul-clara, com os botões do meio abertos e as mangas dobradas. Como sempre fazia. Como se fosse normal. Como se os meses entre nós nunca tivessem existido. Como se a dor tivesse sido um parêntese.
A barriga agora era visível. Não dava mais para fingir. Não dava mais para esconder.
Ela se virou, notando minha presença. Os olhos grandes, castanhos, pararam em mim com uma mistura de susto e ternura.
— Eu… não queria te acordar — ela disse. — Só queria fazer um café.
Abaixei os olhos. Metade do pó estava espalhado no chão. O filtro, jogado ao lado da cafeteira. E ela ali, tentando parecer calma enquanto pisava em migalhas de rotina antiga.
Me aproximei devagar. Parte de mim ainda achava que, se eu me movesse muito rápido, ela desapareceria.
— Grávidas podem tomar café? — perguntei, meio sorrindo, meio curioso.
Ela deu um meio sorriso de volta.
— Eu ia fazer pra você. Em forma de agradecimento… por me deixar ficar aqui essa noite.
Agradecimento. Como se nossa história coubesse numa palavra dessas.
Balancei a cabeça e dei uma risada baixa.
— Catarina, você não precisa fazer café pra mim.
Ela desviou o olhar para o chão, envergonhada.
— Agora é bem difícil mesmo fazer café pra você…
Ela não estava falando do pó no chão. Nem da gravidez. Ou talvez estivesse. Talvez fosse tudo junto.
Me ajoelhei, o joelho estalando discretamente, e comecei a recolher o café derramado com as mãos em concha.
— Adam, não — ela disse, quase correndo para pegar algo. — Eu vou pegar o aspirador…
— Não, não — interrompi, com a voz calma. — Vai se sentar. Eu cuido de tudo aqui.
— Mas…
Peguei com delicadeza sua cintura, girando seu corpo devagar e a conduzindo para fora da cozinha com uma mão firme nas costas.
— Vai. Espera por mim na mesa — falei baixinho, quase como se estivesse pedindo. — Já já eu trago nosso café.
Ela parou perto da mesa, meio sem jeito, como se não soubesse onde exatamente devia colocar as mãos ou os sentimentos.
— Tem certeza? — perguntou, hesitante.
— Claro. — Sorri. — Você ainda gosta de panqueca com bastante mel e frutas?
Ela riu. Aquela risada baixa, meio nasalada, que ela soltava quando algo a pegava desprevenida.
— Gosto. Muito.
— Então vai se sentar — repeti. — Isso vai demorar só alguns minutos.
Ela assentiu, devagar, e se afastou. Eu a observei ir até a cadeira perto da janela e se sentar como se fosse a primeira vez que estivesse naquele lugar. Como se a Catarina que tomava café comigo todos os sábados de manhã tivesse ficado no passado, e essa versão nova estivesse tentando entender se ainda cabia nesse cenário.
Voltei para o café no chão.
Recolhi tudo com calma. Varri o pó, joguei fora o filtro sujo e recomecei do zero. Peguei a cafeteira, enchi com água nova, medi o pó com mais cuidado. Enquanto a bebida começava a borbulhar, peguei os ingredientes da panqueca. Era quase automático. Eu me lembrava da receita que ela gostava, do jeito como preferia o mel escorrendo por cima, das frutas cortadas pequenas. Tínhamos feito isso tantas vezes.
Mas agora tudo tinha um peso diferente.
A barriga dela crescia. O filho não era meu.
E mesmo assim, lá estava eu, quebrando ovos, misturando leite e farinha, tentando acertar o ponto da massa.
Talvez porque, por um instante, eu pudesse fingir que tudo era como antes. Que ela ainda era minha. Que estávamos apenas começando mais um dia.
Ou talvez porque, mesmo depois de tudo, eu ainda a amava.
Terminei as panquecas e coloquei duas no prato. Um pouco de mel, frutas ao lado. Levei as duas canecas de café até a mesa, uma em cada mão, depois o prato.
— Seu café, madame — falei, tentando disfarçar o tremor na voz.
Ela sorriu. Olhou para o prato e depois para mim.
— Obrigada, Adam.
— Não precisa agradecer. Eu que devia estar agradecendo… por esse momento.
Ela arregalou os olhos, surpresa. Como se não esperasse ternura de mim. Como se estivesse se preparando para o exílio, e não para o café da manhã.
Nos sentamos em silêncio por alguns minutos. Só o som dos talheres e da respiração dela preenchia o ar. O café ainda estava quente. A panqueca, macia.
— Você se lembra da primeira vez que fizemos isso? — perguntei, sem levantar os olhos.
— Claro — ela respondeu, quase rindo. — Você queimou a primeira e tentou esconder atrás da pilha de pratos.
— Achei que ia passar despercebido.
— Nunca passou nada despercebido por mim.
E então o silêncio caiu de novo. Mas não era desconfortável. Era… necessário.
Finalmente, levantei o olhar e encarei sua barriga.
— Ele… ou ela… já chuta?
Ela assentiu.
— Às vezes, à noite. Especialmente quando como chocolate.
— Puxou você, então.
Ela riu.
E naquele momento, por mais breve que fosse, era como se tudo fizesse sentido. Como se a dor, as mentiras, os segredos, fossem apenas parte do caminho que nos levou ali.
Terminei meu café devagar.
— Catarina… — comecei.
— Adam, eu…
As palavras se atropelaram.
— Pode falar — disse a ela.
Ela respirou fundo. Tocou a xícara com as pontas dos dedos.
— Eu sei que não tenho direito de estar aqui. Sei que tudo que houve entre nós se quebrou. Mas… obrigada. Por ontem. Por hoje. Por me deixar ficar. Por me olhar sem raiva.
Demorei um pouco para responder.
— Eu senti sua falta.
Ela me olhou como quem não sabia o que fazer com aquilo.
— Eu também senti a sua.
Não falamos mais nada.