capítulo 03

1619 Words
Thais narrando Continuação... Caí no chão, e o choro veio de um jeito que eu nem consegui segurar. Não era só tristeza, era desespero, era dor acumulada, culpa, era tudo misturado. O som do choro ecoava dentro do quarto, abafado pelo travesseiro onde eu tentei esconder meu rosto, como se isso fosse esconder o que eu estava sentindo. Mas não durou muito. Emerson entrou no quarto com os passos apressados, ainda ajeitando a roupa. — Que drama é esse agora, Thaís? — resmungou, revirando os olhos como se eu estivesse chorando sem motivo nenhum. Antes que eu respondesse, ele arrancou o celular da minha mão. Eu ainda tentava ouvir a voz da Luana, que soluçava do outro lado da linha. — Me dê isso aqui. Tô atrasado, c.aralho! — gritou, e sem nem olhar pra tela, simplesmente desligou a chamada. Fiquei em choque. m*l consegui processar. Só consegui olhar pra ele, esperando… alguma reação, alguma pergunta, qualquer coisa. Mas ele só balançou a cabeça e cuspiu: — Ao contrário de você, que tem tempo de sobra pra ficar em casa sem fazer po.rra nenhuma, tem gente aqui que precisa trabalhar!. — E saiu, batendo a porta atrás de si com tanta força que a parede até tremeu. Eu fiquei ali, no chão. O choro me sufocando, a garganta queimando, os olhos tão inchados que pareciam fechar por conta própria. Nem conseguia respirar direito. E, no meio daquele silêncio pesado que ficou no quarto, veio o pensamento mais c***l de todos: Pelo menos… pelo menos eles foram poupados, Meu pai… minha mãe… Eles morreram achando que a filha deles tinha vencido na cidade grande. Que estava estudando pra ser doutora, com futuro brilhante pela frente. Não faziam ideia de que eu tô presa dentro de uma vida que não escolhi. Que saí da Bahia cheia de esperança para mudar o nosso destino, e hoje me vejo aprisionada num relacionamento que me apaga dia após dia. E pior… eu não sei mais se tenho forças pra sair disso. Não sei mais se tenho forças pra continuar, talvez a Thaís que sonhava com o jaleco branco tenha ficado pelo caminho. E o que sobrou… sou eu. Sozinha, em pedaços. Mas mesmo assim… ainda com um restinho de alma que sussurra: Levanta. Respira. Não acabou. Depois que a porta bateu e a casa mergulhou num silêncio c***l, fui até o banheiro. Precisava tentar me acalmar. A água era o único abraço que eu ainda podia pedir. Tirei a roupa devagar, como quem desiste aos poucos, e entrei no chuveiro. A água morna caiu sobre mim, mas não trouxe alívio. Era como se ela apenas escorresse junto com o choro que eu não conseguia mais conter. Chorei como uma criança. Chorei por mim, pela minha mãe, pelo tempo que não volta, pelo adeus que não pude dar. Chorei porque eu sabia que nem no funeral dela eu poderia estar. Nem pra colocar uma flor no túmulo. Nem pra dizer “eu te amo” uma última vez. Depois de longos minutos debaixo do chuveiro, saí me arrastando, como se cada passo doía mais do que o anterior. Peguei uma toalha gasta e me enrolei. Fui até o quarto, abri o guarda-roupa devagar e puxei um vestido velho. Coloquei uma lingerie qualquer por baixo, vesti o pano já desbotado e fui até o espelho. O cabelo estava oleoso, pesado. O shampoo tinha acabado na semana passada, e o Emerson já tinha deixado claro que não ia comprar mais nada. — Você precisa aprender a economizar. Já que não trabalha, não tem o direito de ficar bancando luxo. — Luxo. Para ele, um shampoo era luxo. Peguei a escova e penteei devagar, ignorando o embaraçado nas pontas. Não tinha ânimo pra me olhar direito. Fui até a cozinha ver se conseguia comer alguma coisa. Mas, como sempre, ele já tinha comido tudo. Os três pães que estavam ali sumiram. Sobrou só o café preto, já frio. Suspirei fundo. Peguei uma xícara e coloquei o café no micro-ondas. Enquanto esquentava, comecei a recolher o lixo. Sabia que o lixeiro passava por ali logo cedo, e se o Emerson visse lixo acumulado quando chegasse… ia ter grito, ameaça, talvez pior. Ele odiava a casa bagunçada, mas nunca mexia um dedo. O portão estava trancado. Claro que estava. Ele fazia isso sempre que saía. Morria de medo que eu fugisse. Era por isso que eu vivia trancada dentro de casa, como um bicho de estimação esquecido, uma prisioneira sem sentença. Mas o que ele não sabe… é que eu consigo pular o portão. Já fiz isso uma ou duas vezes, só em último caso. Ele é alto, tem aquelas pontas de ferro na parte de cima que podem cortar a pele se eu errar o apoio. Se um dia eu quiser fugir, vai ter que ser assim: com a roupa do corpo e o coração na garganta. Tentei jogar o lixo por cima do portão mesmo, como costumo fazer. Mas o saco rasgou e caiu tudo se espalhando pelo chão: resto de comida, embalagens, sujeira. Bufei irritada. A garganta já doía de tanto segurar o choro, mas ele veio de novo, latejando por dentro, pronto pra explodir. Respirei fundo, tentando engolir o nó, e fui pegar outro saco. Reuni o lixo todo com vassoura e pá, debaixo do sol que já começava a castigar. Enfiei tudo dentro de um novo saco e encostei o corpo no portão. Olhei pra cima. Já tinha feito isso antes… então respirei fundo, firmei o pé na estrutura de ferro e pulei. Do outro lado da rua, a vida seguia como se nada estivesse acontecendo. Olhei ao redor, esperando ver o caminhão do lixo, mas… já tinha passado. A calçada estava limpa. Não podia deixar o saco ali, Emerson odiava lixo na frente de casa. Bufei novamente e peguei o saco com as duas mãos, arrastando-o até a esquina onde ficava a caçamba. A cada passo, o peso do corpo e da alma pareciam se misturar. A caçamba parecia mais distante do que nunca. Mas eu fui. Sozinha. Porque era isso que eu ainda podia fazer: limpar a sujeira, esconder os rastros, apagar qualquer sinal de caos antes que ele voltasse. E naquele caminho curto até a esquina, percebi que… Se eu sou capaz de sair sozinha com um saco de lixo nas mãos, talvez também seja capaz de sair de vez. Porém a pergunta que nunca se cala dentro de mim é, para onde eu iria?. Faltando poucos passos pra chegar na caçamba, parei. Algo me fez desacelerar. Havia um saco preto maior que os outros, jogado de qualquer jeito, e... parecia que ele se mexeu. Franzi o cenho, tentando entender. Dei mais um passo. Fiquei ali, parada, encarando o saco como se esperasse que ele falasse comigo. "Deve ser coisa da minha cabeça", pensei. O sol já estava forte, minha cabeça doía, eu estava emocionalmente destruída podia muito bem ser alucinação. Mas aí… vi de novo. Um leve movimento. Quase imperceptível. Como um tremor vindo de dentro. O coração acelerou. O instinto falou mais alto. Me aproximei com cuidado, ainda desconfiada, com o estômago revirando. Quando cheguei bem perto, segurei a respiração e rasguei o saco com as mãos trêmulas, sem pensar duas vezes. Foi aí que vi. Um homem. Todo ensanguentado. Rosto machucado, roupa rasgada, braços cobertos de cortes. O peito dele subia e descia devagar ele ainda estava vivo. Fiquei em choque. As pernas travaram por um segundo. Era como se o mundo tivesse congelado ao meu redor. Um homem... jogado como lixo. Vivo. — Meu Deus… — sussurrei, sentindo a voz embargar. Ele gemeu baixo, um som fraco, rouco, mas real. Os olhos continuavam fechados, mas o corpo reagia à dor. Ele estava respirando. Vivo. Desesperado, machucado… e vivo. Olhei ao redor. A rua seguia deserta, como sempre. Nada além do barulho distante de um rádio ligado em alguma casa e o canto solitário de um passarinho no fio. Eu não sabia o que fazer. Chamar socorro? Impossível. Não podia ligar pra ninguém, meu celular estava quebrado e, mesmo se estivesse funcionando, Emerson ia rastrear tudo. Levar pro hospital? Ele podia morrer no caminho. E se fosse um bandido? E se alguém estivesse atrás dele? Mas... e se fosse eu, naquele saco? Engoli seco. Sozinha, com esforço, comecei a puxá-lo para fora. O corpo dele era pesado, mas o desespero me dava força. Arrastei como pude, cuidando pra não bater a cabeça dele no asfalto. Ele soltava gemidos fracos, doloridos, mas continuava desacordado. Levei um tempo pra chegar até minha casa. Meus braços ardiam, minhas pernas tremiam, mas eu não podia simplesmente deixá-lo ali. Quando cheguei na frente, respirei fundo e olhei para a porta do porão. Era o único lugar onde ele poderia ficar sem Emerson descobrir. A entrada ficava ali embaixo, atrás das plantas que ele mesmo mandou colocar para esconder a grade de ferro. Abri a porta devagar. A chave estava sempre escondida atrás do vaso quebrado, onde Emerson nunca olhava. Destranquei a grade e a empurrei com força até abrir um espaço. O porão era pequeno, escuro e úmido, mas era seguro. Pelo menos por agora. Arrastei ele escada abaixo, degrau por degrau. A respiração dele oscilava, e cada gemido fazia meu coração apertar. Quando cheguei lá embaixo, deitei o corpo dele sobre um cobertor velho que estava jogado em cima de umas caixas. Fiquei ali, ajoelhada, ofegante, encarando aquele homem ferido e me perguntando o que, pelo amor de Deus, eu tinha acabado de fazer. Meu peito ainda doía pela perda da minha mãe. Meu rosto ainda ardia pelo impacto do celular. Mas agora... agora tinha um desconhecido ensanguentado no porão da minha casa.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD