CHEFE NARRANDO
Dizem que o crime não compensa, mas esqueceram de avisar isso pro meu pai a tempo.
Ele era o dono do Chapadão. Mandava, desmandava, e era temido até pela polícia. Só que o crime cobra caro. Um dia, o comandante do BOPE matou minha mãe, bem na frente dele. Frio e covardemente. Enquanto ele estava sendo algemado e jogado no camburão, viu a mulher que amava ter a cabeça estourada, sem chance de defesa. Foi ali que ele morreu por dentro. O resto, só foi o corpo acompanhando.
Dias depois, na solitária, meu pai amarrou o lençol no pescoço e escolheu a única saída que muitos conhecem nessa vida: a morte.
E com isso, o trono do morro virou meu.
Ele sempre me dizia: “Honre o morro, filho. Porque quando você precisar, o morro não vai virar as costas pra você.” Pena que ele errou. Viraram sim. Viraram com gosto.
Cresci aprendendo o que é lealdade, o que é sangue e o que é guerra. Nunca fui aquele dono de morro que fica se exibindo com mulherada. Sempre fui homem de uma só a Suellen. Dei tudo pra ela. Roupas, joias, carro, casa. Fiz o mesmo que meu pai fazia com a minha mãe: tratei ela como rainha.
Com o restante, pulso firme. Os vacilão, eu derrubava. Mas pros meus moradores, pros meus vapores, eu era riso fácil, braço estendido. Gostava de andar no meio da favela, dar atenção pros crias, mostrar que chefe também tem coração.
E talvez tenha sido aí meu maior erro.
Eles confundiram respeito com fraqueza.
Confundiram cuidado com moleza.
Deco… meu braço direito. Meu parceiro de infância. Cinco anos mais velho, cresceu comigo, comeu da mesma comida, se escondeu dos mesmos tiros. Sempre me dizia que eu era um bundão. Que esse meu jeito ia fazer todo mundo perder o respeito por mim. Eu ria. Achava que era só implicância. Irmão mais velho botando banca. m*l sabia eu que era inveja engolida com sorriso falso.
Ele e Suellen.
Minha mulher e meu irmão de consideração.
Os dois. Juntos. Tramando minha queda.
E agora aqui tô eu…
Dentro de um saco preto, carregado que nem lixo. O sangue vazando, o ar ficando escasso, os olhos se fechando.
Ainda ouço vozes ao longe. Risadas abafadas. Talvez pensem que conseguiram. Talvez estejam comemorando.
Mas eu ainda tô respirando. Ainda tô aqui.
E se o destino me der essa chance, só uma pra sair vivo dessa, que eles se preparem.
Porque eu juro pelo sangue do meu pai…
Pelo corpo da minha mãe estendido no chão…
Que nem o inferno vai esconder esses dois de mim.
Senti o saco sendo arrastado. O chão áspero raspando no plástico e na minha pele. A dor já era tanta que nem sabia mais onde doía. Só sei que ainda estava consciente, preso num corpo que não me obedecia mais.
Depois, mãos me ergueram com força. Um segundo de suspensão no ar… e então o impacto.
Meu corpo foi arremessado. Caí com tudo, como se fosse um saco de entulho. O baque me fez ver tudo girar. Uma fisgada atravessou minhas costelas e eu gemi baixo, sem força.
Ali, naquele lugar qualquer, seja onde for que tenha me largado o cheiro era diferente. Terra, mato, talvez fumaça de longe. Não tinha mais o som do morro, nem gritos, nem moto subindo escadão. Só silêncio.
Me senti pequeno, fraco, humilhado. Eu, que já fui o dono do Chapadão, agora era só um corpo jogado esperando a morte vir buscar. Mas mesmo sem conseguir falar, mesmo sem conseguir mexer um dedo… Minha mente gritava.
— Deus… não me deixa morrer. Não assim. Não por eles. Não hoje.
A prece saiu confusa na minha cabeça, meio fé, meio desespero. Nunca fui à igreja, nunca fui de rezar, mas naquele momento… era só isso que eu tinha.
E foi ali, no fundo de um buraco, com o corpo dilacerado e o coração destruído que eu fiz minha segunda promessa naquela noite.
A primeira foi acabar com a vida dos dois traidores. A segunda… foi ainda mais forte.
Nunca mais ninguém vai ter o melhor de mim. Nem sorriso, nem cuidado, nem amor. O que restar de mim daqui pra frente vai ser só o que sobrou depois da morte.
E o que sobrou…É ódio.
É frieza. É vingança.
Hoje morre o Chefe e nasce o Fênix forjado na dor e traição.