Thaís Narrando
A vida nunca foi fácil pra mim, mas eu sempre fui movida pela esperança. Meus pais me criaram com o pouco que tinham, no interior da Bahia, na roça. A gente vivia mais de fé do que de dinheiro. E quando a notícia da bolsa integral para cursar Medicina no Rio de Janeiro chegou, foi como se Deus tivesse me dado uma chance. Uma única porta se abrindo em meio a tantas paredes.
Meus pais sabiam que aquilo podia mudar nossas vidas, e mesmo com o coração apertado, meu pai me deu o único dinheiro que ele tinha guardado. Era pra eu encontrar um lugar pra ficar. Eu quase não aceitei. Quase. Mas o sonho de dar uma vida melhor pra eles falou mais alto. Me despedi com o peito doendo, prometendo voltar formada, de jaleco branco e sorriso no rosto.
Cheguei no Rio numa noite abafada, dessas que fazem a alma suar junto com o corpo. No dia seguinte, já saí cedo procurando emprego. Não podia me dar o luxo de descansar. Achei um quartinho numa pensão simples, mas melhor até que o que eu dividia com minha prima lá na Bahia. E, graças a Deus, consegui uma vaga num restaurante.
O salário não era grande coisa, mas as refeições eram por conta da casa, e de vez em quando eu ganhava umas caixinhas que me ajudavam a pagar a passagem pra faculdade, comprar uma blusinha nova e até completar o aluguel. Trabalhava nas folgas, fazia tudo com dedicação. Nunca fui de reclamar. Sempre achei que quem quer vencer precisa se esforçar o dobro.
Foi ali que conheci o Emerson. Novo gerente, simpático, atencioso. Começou puxando conversa, elogiando meu trabalho, perguntando da minha vida. Eu não queria me envolver, minha cabeça estava cheia de planos e responsabilidades. Mas ele foi insistente. Mandava café, puxava cadeira, oferecia carona. No começo até achei bonito. Me senti vista, cuidada. E com o tempo… acabei cedendo. A gente começou a sair, e ele parecia ser um bom homem. De verdade.
Com um ano no Rio, recebi a notícia que me quebrou por dentro, meu pai tinha falecido. Eu queria largar tudo e correr pra Bahia, mas quando pedi folga, o Emerson disse que o RH avisou que, se eu saísse, perderia o emprego. Fiquei. Me culpo até hoje por isso. Nem pude me despedir do meu herói.
Depois disso, pedi várias vezes pra minha mãe vir morar comigo, mas ela sempre dizia que não queria ser peso. Que era melhor eu continuar estudando e tentando a vida sozinha. Eu entendia… mas doía.
As coisas começaram a piorar. O restaurante teve problemas, os donos se separaram, e meu salário começou a atrasar. Um mês sem pagar a pensão e a dona me jogou na rua com tudo. Minhas roupas, meus livros, tudo no chão. Emerson me acolheu, me ofereceu a casa dele, disse que era melhor do que eu ficar perambulando sem ter onde cair morta. Por desespero, aceitei.
No começo, ele foi um príncipe. Cuidava de mim, me incentivava a continuar estudando. Quando comecei a residência, as coisas mudaram. Eu passava horas na faculdade, nos plantões, e ele começou a dizer que era tempo demais longe dele. Que eu devia largar o emprego e focar só na faculdade. Que ele cuidaria da casa e de mim.
Minha mãe disse que a plantação lá na Bahia estava indo bem, que as coisas estavam se ajeitando… Então, aceitei. Achei que era a melhor escolha. m*l sabia eu que estava me entregando a um cativeiro.
Faltando um ano pra me formar, o Emerson se transformou. Começou a ter crises de ciúmes. Dizia que eu inventava plantões pra me encontrar com outros homens. Me xingava, gritava, quebrava as coisas. Depois vieram as agressões físicas. No começo, empurrões… depois tapas. E eu? Tranquei a faculdade. Me sentia sufocada, presa, sem saída. Era como se aquela Thaís sonhadora tivesse morrido. E no lugar dela, ficou só o medo.
Hoje eu conto essa história como quem sangra em silêncio. Mas essa é só a primeira parte. Porque se tem uma coisa que eu aprendi, é que até flor no asfalto dá um jeito de nascer. E eu ainda vou florescer. Mesmo que ele não queira.
Emerson saiu do banho bufando, como sempre fazia quando estava atrasado. Se vestiu às pressas, esbarrando em tudo, xingando baixo. A toalha foi parar molhada em cima da cama e, como sempre, nem se deu ao trabalho de recolher. Eu continuei sentada no canto do colchão, quieta, esperando a tempestade passar.
— Cadê meu celular? — perguntou, seco, já revirando as coisas em cima da mesa.
— Tá carregando na cozinha — respondi baixo, com a voz quase sumindo.
Ele saiu pisando forte, e eu aproveitei pra respirar. Desde que tranquei a faculdade, não podia mais sair de casa sem ele implicar. Nem estágio, nem aula, nem nada. A desculpa era sempre a mesma: "Agora você depende de mim, então vai fazer o que eu mandar."
Do nada, escutei o toque do celular ecoando na cozinha. Reconheci o som e, logo depois, a voz dele.
— A sua prima! De novo, essa intrometida! — rosnou, voltando com o celular na mão e a raiva estampada no rosto. — O que ela quer agora, hein?
Antes que eu abrisse a boca, ele atirou o celular contra a parede. Só que o aparelho desviou no impacto e acertou em cheio o lado do meu rosto. A dor foi tão rápida quanto cortante. Senti o calor subir pela bochecha, o latejar imediato. Levei a mão ao rosto, surpresa, mas ele nem ligou.
— Vai se levantar ou vai ficar de enfeite? Eu tô atrasado pro trabalho e não quero você aqui enrolando pra ligar pra ninguém, ouviu? — esbravejou, pegando a mochila dele.
Eu apenas balancei a cabeça, concordando. Já nem tinha forças pra discutir. Por dentro, a revolta queimava. Isso tudo podia ter sido evitado se ele não tivesse quebrado o meu celular… O único que eu tinha, aquele que comprei com dinheiro de caixinha no restaurante. Agora eu era refém até pra falar com minha própria família.
Assim que a porta bateu atrás dele, esperei alguns segundos pra ter certeza de que ele realmente foi embora. A dor na bochecha ainda ardia, mas o medo era pior. Peguei o celular no chão. Trincado, mas ainda funcionando. Vi o nome da Luana, minha prima, nas ligações perdidas. Com as mãos trêmulas, disquei de volta. Ela atendeu soluçando.
Ligação on
— Thaís… ai, minha irmã… me perdoa, mas eu precisava te contar…
— O que aconteceu, Luana? — perguntei, já sentindo o coração se despedaçar. — Fala logo!
— É sua mãe… Ela teve um infarto de madrugada, Thaís… A gente correu, tentou de tudo… mas… ela não resistiu…
Senti o mundo parar. Meus ouvidos zumbiam, as pernas fraquejaram. Caí de joelhos no chão frio do quarto, o celular escapando da minha mão como se fosse só mais uma parte de mim despencando.
Minha mãe… Minha mãe se foi…
E eu nem pude estar lá. Nem pra segurar sua mão. Nem pra ouvir sua voz uma última vez.
Agora era só eu, presente num inferno particular, com um homem que me mantinha presa, sufocada, apagada, sem pai, sem mãe, sem um sonho, sem ninguém, sem saída.