Rosa Narrando - continuação
E o que me mata é saber que agora ela tá vindo por mim. Depois de tudo que eu falhei. Depois de tudo que eu deixei ela passar. Ela tá vindo. Com aquele olhar forte que só ela tem. Com a pose que eu nunca tive. Com a luz que nem a distância apagou.
A minha filha virou Sol. Literalmente. Ilumina tudo que toca. E agora tá voltando pra casa pra me tirar da escuridão.
Só Deus sabe o que eu tô sentindo. Só Deus sabe a vergonha que eu tenho no peito. Mas também sabe o orgulho. Porque mesmo com a infância remendada, ela virou mulher. Virou referência. Virou gigante.
Nem tudo foi tristeza, sabe? Teve uns dias que foram bonitos. Que mesmo com tudo desabando ao redor, a Sol conseguia sorrir de um jeito que clareava até as partes mais escuras da minha alma. Eu lembro como se fosse agora. A gente não tinha quase nada, mas aquele quintal de cimento rachado era o nosso mundo. Era ali que ela vivia os melhores dias da infância dela, e eu também.
Eu acordava cedo, pegava a mangueira e começava a lavar o quintal, e ela já vinha toda animada, botando o biquíni velho que ganhamos de uma vizinha, aquele com estampa de estrelinha que já tava até esgarçado nas laterais, mas era o xodó dela. A Sol sempre foi gordinha, sempre teve a barriguinha redonda, as coxinhas grossas, os bracinhos fofos, e nunca se incomodou com isso. Ela se achava linda, e era mesmo. Mas isso foi antes dela conhecer a maldade do mundo.
Ela pelo quintal rindo alto, girando debaixo da água como se tivesse em algum parque aquático, jogava a mangueira pra cima e gritava: “Olha a chuvaaa!”, enquanto eu mandava ela tomar cuidado pra não escorregar.
A gente não tinha piscina, nunca tivemos, mas isso não impedia ela de brincar. Eu pegava uma bacia azul que usava pra lavar roupa, enchia até a borda e dizia: “Hoje tu vai tomar banho de rainha, hein!”. Ela pulava dentro, sentava com as perninhas pra cima, e às vezes entalava, coitada. Ficava com os pezinhos pra fora e o bumbum preso, e eu ria tanto que até esquecia do mundo. Ela também ria, dizia: “Mãe, tô presa! Me salva!”, e eu fingia que não ia ajudar, só pra ouvir ela gargalhar mais.
Quando a água acalmava, ela estendia um pedaço velho de lençol no chão, daqueles já puídos de tanto uso, e arrumava as bonecas por cima. Tinha algumas ainda, umas que eu consegui guardar, que o pai dela não conseguiu vender ou quebrar. Eram bonecas velhas, de braço mole, cabelo embolado, algumas sem roupa, mas pra ela eram todas princesas. A Sol arrumava cada uma com um cuidado que me emocionava, penteava os cabelos com os dedos, enfileirava todas em cima do lençol e dizia que era o “salão da Sol”, que ela era a dona e ia deixar todo mundo linda.
Enquanto ela brincava, eu entrava pra fazer o almoço, mas deixava a janela aberta, só pra continuar escutando a voz dela, as historinhas que ela inventava, os nomes engraçados das bonecas, os conselhos que ela dava como se fosse adulta. “Você tem que se amar, viu, boneca? Mesmo sem vestido. Você tá linda.” Era isso que ela falava. E eu parava no meio do feijão, com a colher na mão, e chorava. Chorava quieto, baixinho, porque aquilo doía e curava ao mesmo tempo.
Naquele quintal, minha filha foi feliz por alguns instantes. Naquele pedacinho de chão duro, ela viveu como criança deveria viver: com liberdade, com alegria, com criatividade. E eu fiz parte disso. Mesmo na miséria, mesmo com o caos dentro de casa, eu dei isso pra ela. Eu ofereci o que pude, o que coube nas minhas mãos cansadas, no meu coração machucado, na minha fé esticada até o limite.
Hoje, lembrar disso é o que me mantém viva.
Porque mesmo tendo sido uma mãe ausente depois, mesmo tendo falhado em protegê-la do pior, eu fui presente nos pequenos detalhes. Eu dei o banho de mangueira, eu enchi a bacia, eu estendi o lençol, eu guardei as bonecas. Eu fui a mulher que segurou o mundo nos ombros só pra minha filha sorrir por algumas horas num quintal rachado, com cheiro de sabão e som de risada.
E ninguém vai tirar isso de mim. Por mais que hoje ela seja essa mulher toda firme, decidida, linda, dona dela mesma eu sei que dentro dela ainda existe aquela menina gordinha de biquíni colorido, que tomava banho de mangueira e arrumava boneca molhada no sol. E se ela virou Sol… é porque, de alguma forma, eu ajudei a acender essa luz.
E eu continuo aqui Esperando. Rezando pra ela chegar logo. E com o coração apertado por nunca ter conseguido ser mãe do jeito que ela merecia.
Mas tendo certeza que fui a melhor mãe que eu consegui ser.
A Sol virou mulher sem minha presença. Se formou. Abriu um salão. Virou referência em autoestima, em empoderamento, em coragem. Enquanto eu… continuei aqui. Preservando um lar que nunca foi lar.
Vivendo com um homem que fede a álcool e fracasso.
Até que essa semana tudo explodiu.Ele arrumou problema com gente do tráfico. Falou o que não devia, fez o que não podia, e agora tão jurando matar. E quem comanda tudo aqui agora é o tal do Ítalo, vulgo Brasa. Dizem que ele não tem paciência, que é seco, direto, explosivo. Dizem que ele já matou por muito menos. E agora o recado veio claro:
Se esse homem não sumir do morro, vão botar fogo na casa com ele dentro. Comigo também. Eu entrei em pânico.
Foi a primeira vez em anos que eu me vi mais assustada do que conformada. A primeira vez que o medo bateu de um jeito diferente. Não era mais aquele medo quieto. Era um medo urgente. Desesperado. E a única pessoa que eu pensei em chamar… foi minha filha.
Liguei pra Sol tremendo. Chorando. Gaguejando. Pedi ajuda. E pela primeira vez, eu escutei a voz da minha filha mudar de tom.
— Eu tô indo aí.
Foi o que ela disse seca e firme, como quem não vai pedir favor pra ninguém. E agora eu tô aqui esperando com o peito apertado, com a casa trancada e com o desespero engasgado.
Minha filha tá voltando. A que saiu pra viver. A que virou luz. A que hoje carrega o nome de Sol, e brilha tanto que até esse morro maldito vai ter que baixar a cabeça pra ela.
Só espero que não seja tarde demais. Porque se esse fogo for aceso Queime o passado todo.
Mas deixe ela inteira.