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1251 Words
Maju narrando Fiz outro café como quem faz reza. O primeiro já tinha ido embora morno na caneca; esse veio mais forte, mais preto, mais amargo que o dia. Eu e a Lore ficamos em pé na cozinha por uns segundos, sem falar, ouvindo a TV gritar da sala. Quando a chaleira chiou, a âncora cortou a programação: “ATENÇÃO: novos números e imagens da operação nos Complexos do Alemão e da Penha.” A gente levou as canecas pro sofá. A TV dividiu a tela: de um lado, telhado e helicóptero; do outro, fila de presos de cabeça baixa, mão pra trás, e um repórter molhando a palavra “apreensão” até virar estatística. Vídeo de morador entrou no GC: gente correndo com criança no colo, grito de “fecha a janela!”, alguém chorando “pelo amor de Deus”. — Maju, olha isso!!! — Lorena quase deixou a caneca cair no tapete. — Isso é uma chacina, gente. Que isso, cara… isso tá errado. Olha ali, olha ali, repara na senhora fechando a janela tremendo. E o repórter falando “área controlada” como se fosse limpeza. Limpeza de quê? De gente? Eu fiquei olhando, sem piscar. A câmera deu um zoom em três rapazes sentados no chão, tornozelo ralado, poeira até no cílio. Um tava sangrando de leve no supercílio, respirando pela boca. Ao lado, mesa de arma, rádio, sacola. “Material apreendido.” A tarja subiu: “Mais de 80 presos; mortos passam de 100, dizem fontes.” — Mano… — Lore levou a mão à testa. — Eu odeio isso. Odeio ver favela virando palco de filme r**m. E o povo lá de cima comentando “tem que matar tudo”. Tudo quem, c*****o? E a dona Maria que não consegue sair? E o moleque que nasceu ali e nunca teve pra onde ir? — Ela virou pra mim, os olhos acesos. — Esse teu marido… nossa… aposto que deve ter derrubado uns noventa do jeito que ele é, um animal. Eu continuei olhando pra tela, e o café esfriou rápido demais nas minhas mãos. A palavra “animal” ficou rodando no ar da sala igual mosquito. Eu respirei fundo antes de responder. — Lore, por favor… — minha voz saiu baixa. — Toma juízo. Não fala do que tu não sabe como foi. Tu não tava lá. — E nem quero tá, Maju. — ela rebateu, sem aliviar. — Mas eu vejo. Eu sinto. Isso aqui… — apontou pra TV — …não é operação, é castigo coletivo. A rua sofre. E ele participa disso todo santo dia. — Ele me mandou “tô vivo”. — sussurrei, quase sem som. — Duas palavras. Só isso. E tu quer que eu faça o quê com esse tanto de imagem na cabeça? A TV agora rodava vídeo vertical de morador: “tão subindo pelo IP!”, “fecha, fecha!”, uma mão empurrando a criança pra debaixo da mesa. Lorena puxou o celular, abriu o Twitter, virou a tela pra mim: #ChacinaNoAlemão subindo, gente marcando Defensoria, jornalista independente narrando ao vivo, thread com depoimento, “balão de gás estourado achado como ‘explosivo’”. Ela rolava como quem procura ar. — Olha isso, Maju, olha isso. Relato real, não é TV. Mulher falando que retiraram corpo no mato. Outras dizendo que tem gente desaparecida. — Os olhos dela marejaram sem pedir licença. — Não tem como achar isso normal. Eu engoli seco. Minha vontade era desligar a TV, fechar a janela, enfiar o celular dentro do freezer pra ver se a ansiedade dormia de frio. Em vez disso, fiquei plantada. Porque tem coisa que a gente não escolhe não ver. — Eu não acho normal. — falei, firme. — Eu não acho certo. Eu só… — procurei as palavras como quem procura o chinelo no escuro — …tô entre as coisas. Entre o amor e a raiva. Entre a Maju que treme e a que respira fundo e espera ele abrir a porta. — Eu sei. — Lore baixou a guarda, encostou o ombro no meu. — Eu sei. E eu tô aqui pra ficar enquanto tu espera. Entrou outra imagem. Um corredor que eu conhecia de algum dia de sol antigo, agora tomado de gente fardada. O repórter falou “golpe no crime organizado”; minha cabeça traduziu “golpe em todo mundo junto”. A câmera cortou pra mãe na janela, boca em silêncio, mão no peito. Eu vi a minha mãe naquele gesto. Vi todas. — Tu lembra quando a gente ia pro Alemão comprar mochila mais barata? — Lore soltou um riso triste. — Tu ficava escolhendo caderno de capa brilhante. Eu pirava no pastel. — Lembro. — sorri sem querer. — Eu pechinchei um estojo até o cara jogar uma borracha dentro e falar “vai, menina, some da minha porta”. — O sorriso morreu rápido. — Hoje… sei lá… parece outro mundo. Um mundo de guerra colado no nosso. O celular vibrou. Eu e a Lorena pulamos ao mesmo tempo. Mensagem de grupo da família. Tia mandou “estão vendo a TV?”, primo respondeu “fecha a janela”, minha mãe mandou oração. Nada do Rodrigo. Eu escrevi “tô bem” e apaguei. Escrevi “tô com a Lore” e mandei. — Tu quer que eu desligue a TV? — ela perguntou. — Não. — respondi, e até me surpreendi. — Hoje eu olho. Eu vejo. Amanhã, eu decido o que fazer com isso. A TV deu mais número. Alguém na bancada falou “resultado expressivo”. A palavra me feriu o ouvido. “Resultado.” Como se o que eu tava vendo fosse planilha. Como se não tivesse nome no chão. Como se não tivesse história algemada no meio-fio. Resultado. — Tu vai conseguir dormir quando ele chegar? — Lore perguntou depois de um tempo. — Não. — sorri cansada. — Mas eu vou fingir que sim. Vou fingir que tá tudo certo, que “é trabalho”, que “faz parte”. Aí, quando ele virar pro lado, eu levanto e fico parada aqui, igual agora. — Olhei pra TV e pro celular, um em cada mão. — A diferença é que hoje eu não vou calar o que ficou preso. — Boa. — ela ergueu a caneca num brinde torto. — A Maju que fala é minha favorita. — E a Lorena que cala às vezes também presta, tá? — cutuquei, e ela riu, limpando o canto do olho com o dorso da mão. Ficamos vendo mais um pouco, sem pressa de acabar com a certeza de ninguém. A tarde começou a pesar atrás das nuvens e o helicóptero diminuiu o giro não o suficiente pra dar paz, só pra trocar o barulho. Eu respirei fundo, contei até cinco, e apontei pro coador. — Mais um café? — Mais um. — ela levantou. — E separa açúcar. Hoje o dia pediu muito. No caminho pra cozinha, o celular vibrou de novo. Eu parei no meio da sala, era o Rodrigo, “Acabando aqui.” Eu olhei pra mensagem como quem encara mar agitado. Digitei devagar: “Ok. Tô em casa. Se cuida.”. Lore voltou com o filtro na mão e o olhar atento. — Ele? Assenti. Ela encostou a testa na minha, um segundo de silêncio, e disse baixinho: — Então a gente espera juntas.
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