Maria Júlia Narrando
O barulho começou baixinho, como um mosquito chato que insiste no seu ouvido. Vibra. Silencia. Vibra de novo. No terceiro, eu já tava com o olho aberto, encarando o teto escuro do quarto e o peito apertado como se tivesse pedra em cima. Eram 3h17. Rodrigo roncava ao meu lado, pesado, dono de um sono de quem manda no mundo. Eu virei de lado, tentando achar um lugar onde o som não me alcançasse, mas a vibração vinha da sala.
Levantei e o chão gelado, a luz da rua recortando um pedaço de sombra no corredor, e o coração batendo alto. A mochila dele tava jogada no canto do sofá, a preta, de serviço. A mesma que ele larga do jeito que quer, no canto que quer, porque a casa, até onde ele acredita, é extensão do quartel. A vibração vinha dali. Eu encostei os dedos no zíper como quem encosta numa ferida.
Abri e tava ali um celular que não era o de sempre. Menor, sem capinha, tela arranhada. Vibrava de novo, acendendo um pedacinho de luz que estourou o escuro da sala. Notificação: três mensagens novas. Sem nome no contato, só um coração preto, um apelido bobo. Outra notificação subiu em cima: áudio de 15 segundos. Parei com o aparelho na mão, ouvindo o barulho do meu próprio sangue nos ouvidos.
— Que celular é esse, Rodrigo? — falei baixinho, como se a sala respondesse.
Não respondeu, claro. Só vibrou de novo. Eu apertei a lateral. A tela acendeu inteira, com aquele papel de parede padrão. Bloqueado, passei o dedo e pediu a senha. A boca ficou seca na hora. Tentei a data do nosso casamento, erro. Tentei a data do aniversário dele, erro. Tentei o óbvio que qualquer policial escolhe quando acha que é mais esperto que todo mundo: 190190 , erro. Respirei fundo. O celular vibrou mais uma vez e, no banner da mensagem, eu vi o suficiente pra entender a cena sem precisar invadir nada: saudade da tua boca gostosa na minha bucetinha com um emoji de fogo e outro de gota.
Senti um troço dentro de mim que não era raiva ainda. Era um acordar. Um “ah, então é isso”. Mas era como se a vibração estivesse vibrando dentro de mim também.
Peguei a mochila com a outra mão e puxei um caderno, uma carteira tática, uma caixinha de piteira “é pro disfarce”, ele sempre dizia e então um carregador. Nada da senha. Olhei pra porta do quarto. O ronco dele parou por um segundo, voltou. Eu encostei o celular na beira do sofá, posicionei o aparelho na direção do quarto e fiquei ouvindo mais um pouco. Outras mensagens chegaram. Quatro. Cinco. O áudio novo subiu e a curiosidade foi maior que qualquer prudência: dei play com o volume no mínimo, o fone do meu pensamento colado no alto-falante minúsculo.
— Tá de plantão, gatinho… — a voz arrastada de mulher, rindo baixinho — lembra de mim não? Fiquei pensando no teu cheiro. Manda foto.
Parei o áudio com o dedo tremendo. Tava feito. O inferno que sempre avisaram e eu talvez fingia que não existia, de repente, tinha CEP, voz e pedido de foto às 3h da manhã.
Voltei pro quarto com o celular na mão. O quarto cheirava a perfume dele. Liguei a luz pequena da cômoda. Rodrigo mexeu o ombro.
— Desliga isso, preta — a voz áspera de sempre, sem abrir os olhos.
— Que celular é esse? — perguntei, e eu mesma estranhei o jeito calmo que saiu.
Ele abriu um olho só, lento, como um bicho que avalia o perigo antes de morder.
— Que celular, Maju?
Ergui o aparelho.
— Esse.
Ele piscou, a máscara de sono caindo do rosto. Se ajeitou, sério num segundo.
— Trabalho. — Esticou a mão. — Me dá.
— Trabalho que manda áudio às três da manhã pedindo foto e diz que tá com saudades da tua boca na b****a? — eu sorri sem alegria. — Informante apaixonada?
— Me dá o celular, Maria Júlia— repetiu, cada palavra como um comando.
Eu dei dois passos pra trás. Ele sentou na cama e, por um segundo, a gente só ficou ali se medindo. O homem que usa o olhar como arma. A mulher que aprendeu a se encolher. Mas hoje, não. Hoje eu tava com a vibração do aparelho no meu osso.
— Desliga essa luz. — Ele levantou, a sombra dele ficava maior perto de mim. — Cê enlouqueceu de vez? Vai mexer nas minhas coisas? Na minha mochila?
— Está dentro da minha casa, sou proibida? — respondi, e a minha própria coragem me espantou. — Ou é quartel agora? Eu tenho que bater continência pra entrar na sala?
Ele veio pegar o celular. Eu segurei firme.
— Solta! .
— Por que você tem dois? — perguntei. — O outro, eu conheço. Esse aqui, esse aqui é pra quê? Pra vida paralela?
Ele bufou rindo, aquele riso curto que não chega no olho.
— Você não tem ideia do que tá falando. Isso é trabalho. É operação. Você quer me atrapalhar? Quer morrer?
Ele esticou o braço rápido, pegou meu pulso. Doeu. Eu não gritei. A outra mão dele veio certeira, tirou o celular da minha, num golpe treinado de quem já tirou arma de muita gente.
— Tu não pega mais isso — ele disse entre os dentes, engolindo a raiva como quem engole balas. — Tu não mexe nas minhas coisas. Tu não mexe mais nas minhas coisas, Maria Júlia.
Ele respirou fundo, como quem decide qual tom vai usar comigo, e o rosto dele mudou. Ficou calmo. Quase doce.
— Ô, amor, calma. Isso aí não é meu. — Ele se aproximou. — É do amigo lá da equipe. Ele brigou com a esposa e deixou comigo pra ela não fuçar. Tu sabe como é, né? Gente ciumenta, casa pegando fogo por bobeira. — Deu um sorrisinho curto. — Eu botei na mochila e dormi. Esqueci que tava ligado.
Fiquei olhando pra ele, pro celular, pra gaveta da cômoda onde ele sempre guarda os troços do trabalho. Meu corpo inteiro pedia pra acreditar. Era a primeira vez que algo assim me atravessava de frente.
— Então, não é teu? — sussurrei, tentando organizar as perguntas que brigavam na minha língua.
— Não, meu amor. — Ele falou “meu amor” como quem oferece abrigo da tempestade. — Se fosse, eu te falava na lata. Tu me conhece. — Ele inclinou, tocou meu cabelo atrás da orelha, o gesto automático de quem já me leu mil vezes. — Eu tô no batente pra botar tudo aqui dentro de casa. Tu acha mesmo que eu ia te desrespeitar? — Bateu no próprio peito de leve. — Eu? Com a mulher que eu cuido?
A palavra “cuido” entrou em mim como uma manta quente. Eu quis perguntar do banner, do áudio, do emoji, de tudo. Mas a mão dele já tava no meu rosto, o polegar secando uma lágrima que eu não percebi que tinha caído.
— Olha pra mim — ele pediu, macio. — Confia em mim vida. Amanhã cedo eu devolvo pro cara. Se tu quiser, eu boto ele pra te ligar e falar contigo, explicar. Mas agora… — Ele guardou o celular na gaveta, trancou com a chavezinha fina, e depois virou inteiro pra mim. — Agora, vem cá.
Eu fiquei dura um segundo, como se meus pés estivessem parafusados no piso. Ele abriu os braços e me puxou com calma, o queixo encostando na minha cabeça. O peito dele cheirava a banho tomado antes de deitar, sabonete forte. O abraço era o mesmo que sempre me ajeitou. Eu respirei um pouco dentro dele, e só então percebi que tava tremendo.
— Desculpa — eu falei baixinho, sem saber de quê. — Eu… eu ouvi vibrar e… — A voz quebrou. — Eu fiquei com medo.
— Que isso, meu bem — ele sussurrou, a mão deslizando nas minhas costas, paciente. — Tu não tem culpa de nada. Eu é que devia ter desligado essa porcaria. — Deu um beijinho na minha testa. — Cê sabe que muita coisa do meu trampo é sigilo. Às vezes pinta mulher de informante, gente que manda besteira, e esse mundo sujo. Eu não quero tu nisso. Por isso eu nem falo, pra não te botar dentro da lama. Entende?
Assenti com a cabeça. Uma parte de mim queria gritar que eu tinha lido “saudade do teu cheiro”. A outra parte a que aprende a sobreviver só queria dormir e acordar com aquilo tendo sido um sonho r**m. Ele me deitou, ajeitou o meu travesseiro, apagou a luz pequena, e a escuridão do quarto voltou a ser o lugar onde eu costumava me esconder.
— Deita aqui — ele chamou, já deitando atrás de mim. O braço pesado me enlaçou pela cintura, firme, o corpo dele colado nas minhas costas. — Respira comigo.
Eu respirei. Tentei entrar no ritmo dele, e o ritmo dele era largo, seguro. A mão fez carinho no meu cabelo, no meu ombro, no meu braço, como quem desfaz nó com paciência. A minha lágrima escorreu de novo, molhou o travesseiro. Ele percebeu.
— Ei… — sussurrou. — Tô aqui. Eu jamais ia te fazer passar vergonha. Amanhã isso some da tua cabeça. Te prometo.
Eu queria perguntar por que alguém deixaria um celular cheio de mensagens com outro homem. Eu queria perguntar nome, prova, contexto. No lugar, veio um soluço curto, feio, que eu engoli. Ele apertou meu corpo contra o dele, e o calor da pele me puxou pra um canto conhecido de mim mesma — aquele onde eu sempre fazia as pazes com o que doía.
— Tu é minha mulher — ele disse no meu ouvido, sem dureza. — Eu não vou te perder pra paranoia. Dorme.
O quarto ficou só barulho de respiração e, lá longe, um latido de cachorro. Eu pensei na Maju que existia antes de tudo isso: a que acreditava fácil, a que queria ser amada sem precisar fazer prova. Pensei se ela ainda morava em mim. O peito do Rodrigo subia e descia no compasso certo. Ele cheirou meu cabelo, naquele jeito ensaiado que sempre me desmontou, e eu chorei mais um pouco em silêncio, até o corpo ceder.
Algum tempo depois, a vibração veio de novo baixinha, quase um sussurro. O som atravessou o quarto, bateu na minha nuca. Eu prendi o ar. Ele também ouviu. Senti o corpo dele ficar atento um segundo, e depois relaxar.
— Grupo do plantão já dando bom dia — murmurou, sem abrir os olhos. — Fica fria.
Fechei os meus. A promessa de que “amanhã ele traz o amigo pra explicar” ficou repetindo na cabeça como uma reza. Eu agarrei nela. Era a primeira rachadura, e eu ainda não sabia que rachaduras fazem barulho quando crescem. Naquela madrugada, só me importava parar de tremer.
Ele continuou fazendo carinho, lento, quase um embalo. E eu fiquei ali, chorando baixinho do lado dele, deixando a lábia dele varrer a minha dúvida pra debaixo do tapete por mais uma noite. Até o sono me encontrar.
Espero que gostem!!! ❤️