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1338 Words
Penélope Narrando A noite caiu sem cair. Eu tava deitada de lado, luz apagada, TV muda, celular carregando na mesinha. Quase dormi de cansaço nervoso quando o controle remoto piscou sozinho, eu juro, e a TV ligou no plantão. “Última hora: informações dão conta de que o chefão conhecido como Gadernal teria sido localizado…” Eu sentei na cama como se tivesse levado choque. — Como é que é? A âncora ajeitou o ponto na orelha, aquele sorriso de quem gosta da própria voz. Tela dividida. Ao vivo da Cidade da Polícia, sirene no fundo, fita amarela tremendo no vento. Embaixo, GC vermelho: “GADERNAL CAPTURADO?” Meu coração foi parar no chão do quarto. — Thiago, atende. — peguei o iPhone com mão de garra. Áudio de dois segundos: — Fala comigo. Mensagem: E: “Tão dizendo que te pegaram. Mente pra mim se for preciso, mas fala.” Nada dele responder. O repórter entrou com a empolgação que me dá vontade de quebrar televisão: “Seguindo fontes da polícia, o líder do tráfico no Complexo do Alemão teria sido cercado durante a operação e recapturado. O criminoso tem extensa ficha: homicídios, tráfico, corrupção de menores, organização criminosa, lavagem de dinheiro, porte ilegal de arma de uso restrito…” — Extensa é tua cara, o****o. — rosnei. Levantei, comecei a andar. Cinco passos até a cortina, cinco de volta. O vestido arranhando a coxa, a arma espiando o mundo pelo cós. — Atende, Thiago. Abri o frio (celular do trampo). Grupo das meninas explodindo: “Plantão tá falando que pegaram ele.” “Quem confirma?” “Tão filmando um de camisa preta entrando no camburão, não dá pra ver a cara.” “Fake news ou não?” Meu dedo foi no teclado, coçando pra gritar FAKE, mas a frase dele queimou de novo na cabeça: “Nada de postar. Fica quieta.” Engoli a língua. Fechei o app. Voltei pro iPhone. Outra mensagem: E: “Se tu tiver no buraco, dá um sinal. Qualquer um.” A TV trocou a imagem. Agora, “imagens exclusivas”: um homem grande, rosto borrado, sendo empurrado pra dentro do carro. Podia ser metade do morro. A legenda já tratou de concluir por mim: “Seria o Gadernal.” Logo depois, entrou VT com narração engomada: “Considerado extremamente perigoso, ele seria responsável por coordenar ações violentas, ordenar execuções e movimentar milhões no tráfico local. As investigações apontam ligação com diversos crimes…” Eu comecei a rir. Riso curto, de quem vai chorar ou matar. — Seria. “Seria”, “teria”, “apontam”. Vocês amam um condicional, né, meus anjos? — falei pra TV, catando o controle e aumentando o volume como se eu quisesse que a cidade inteira me ouvisse. Vontade de postar um stories com “ele tá vivo, p***a” me coçou a alma. Eu abri a câmera. Mirei a taça vazia no criado-mudo. Minha mão tremeu. Fechei a câmera. Eu não vou f***r o plano dele por trinta segundos de alívio. Respira, Penélope. Respira. Puxei a agenda da bolsa. Liguei pro Dr. Marins, nosso advogado de guerra. — Doutor, plantão tá dizendo que pegaram ele. — Tô vendo. — a voz dele veio sem drama, o que me irrita e acalma ao mesmo tempo. — Nada oficial. Se tivesse entrada, já teriam trazido pra Cidade da Polícia e alguém me avisava. Tô de plantão aqui. Você não sai do hotel. — Se trouxerem, eu quero na porta. — falei, seca. — E bota gente com a coroa. Se pisarem na rua dela, eu desço. — Já botei. — ele respondeu. — Mantém o rádio baixo, Penélope. Desliguei. Voltei pra TV. A âncora fez cara de “olha como eu sei” e chamou outro repórter: “Tudo indica que o criminoso tenha sido localizado em um esconderijo…” — Esconderijo o c****e, meu amor. — falei, sozinha, mas não me senti só. — Bunker é outra coisa. Bunker não é pra se esconder, é pra governar calado. Minhas pernas viraram algodão. Eu sentei no chão e deixei o vestido abrir na coxa como se eu tivesse tirando armadura. Voltei pro noticiário. Já tinham passado pro bloco “Quem é Gadernal” foto velha de internet, vídeo sem áudio de baile, texto dizendo “ostentação de ouro e armas”, “primeiro da linha”. A mesma ladainha de sempre, mas hoje doeu. Não porque me assusta. Porque reduz. Reduz a nós dois, reduz o morro, reduz tudo a meia dúzia de palavra gorda. A TV ainda insistia: “Fontes afirmam que ele teria sido visto com o braço direito, o Playboy…” — Fontes que não sabem nem o caminho do bar da Zefa. — falei, dobrando a folha e enfiando no sutiã. — f**a-se suas fontes. As horas começaram a se arrastar, e a tela não parava de repetir o nome dele — “Gadernal, o chefe do tráfico mais procurado do Rio, teria sido capturado em operação conjunta com o BOPE e a CORE.”. Mas as frases todas batiam igual bala de borracha: não matava, mas doía. O rosto que aparecia borrado podia ser qualquer um, mas na minha cabeça era ele. Era o meu homem sendo arrastado, algemado, chutado, com aquele olhar que desafia até o inferno. Peguei o celular de novo, dedo tremendo. E: “Thiago, fala comigo, pelo amor de Deus.” E: “c****e, não faz isso comigo, não me deixa aqui sozinha, responde alguma coisa.” E foi aí que veio o choro. Não aquele bonito de novela, de lágrima que escorre devagar. Foi soluço, nariz ardendo, peito travado. Eu sentei no chão, encostada na cama, o cabelo caindo no rosto, os cílios borrando o travesseiro. — Thiago, c*****o… — sussurrei, com a voz falhando. — Tu prometeu que ia voltar. A TV continuava: “Ele tem uma ficha extensa. Desde adolescente, coleciona passagens por tráfico, homicídio, associação criminosa…” Cada palavra parecia um tiro nas minhas lembranças. Enquanto eles falavam “criminoso”, eu lembrava do homem que botou comida na mesa da mãe dele. Enquanto diziam “assassino”, eu lembrava dele me cobrindo com o lençol depois do banho. Enquanto listavam “líder do tráfico”, eu via ele dando brinquedo pras crianças no Natal. — Eles não sabem p***a nenhuma de você, amor… — falei pra TV, chorando, cuspindo as palavras. — Eles não viram tu dividir o último pão, eles não viram tu segurar o moleque baleado no colo, eles não viram nada. Peguei o celular de novo, dedo pesado. E: “Se tu foi pego, eu juro por tudo que é mais sagrado, eu te tiro daí nem que seja no inferno. Eu juro, Thiago.” Peguei o telefone do hotel, disquei o número do advogado com o dedo tremendo. — Doutor! — a voz saiu entre o choro e a raiva. — Tão dizendo na televisão que pegaram ele! — Penélope, calma… — ele tentou manter o tom firme. — Não tem nada confirmado. Eu tô aqui na base, e nenhum mandado novo entrou. Se ele tivesse sido preso, o nome já teria caído no sistema. — Mas tão mostrando na p***a da TV! — gritei. — Tão lendo o CPF dele, tão lendo a p***a da vida dele ao vivo! — Isso é teatro, minha filha. — ele suspirou. — É a mídia jogando fumaça. Fica onde ele mandou. Não faz nada. Eu desliguei antes dele terminar. A raiva já tava misturada com desespero. Fui pro banheiro, lavei o rosto, e encarei o espelho. Os olhos vermelhos, a boca tremendo, a maquiagem escorrida. Mas por trás da bagunça, lá tava ela — a Penélope dele, a mulher que o mundo pode tentar derrubar, mas não quebra. — Tu volta pra mim, Thiago. — murmurei. — Nem que o céu caia, tu volta. E no fundo, eu sabia: se ele não voltasse, eu mesma ia buscar.
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