Dona Nádia Narrando
Meu joelho já nem sente mais dor. Já virou parte do chão frio dessa sala. Aqui, nesse cantinho entre o sofá e a estante, é onde eu rezo quando o inferno desce pro asfalto. E hoje… hoje o inferno chegou gritando, com sirene, fuzil e bota pisando forte no meu beco.
O barulho do helicóptero começou ainda de madrugada. Primeiro só um zunido longe, depois aquele baque surdo das hélices cortando o céu. Quando chegou mais perto, eu já tava de joelho. Rezei um Pai Nosso antes mesmo do café.
— Meu Deus… protege meu filho. Onde quer que ele esteja.
A televisão ligada baixinho, como sempre. Mas nem precisava do volume alto. O grito do vizinho lá de baixo já veio rasgando:
— É no Alemão! Operação no Alemão!
Eu fechei os olhos. É aqui. É aqui que meu filho se criou. Aqui que ele se perdeu.
Thiago era uma criança esperta. De risada fácil, daquelas que desarmavam qualquer bronca. Quando era pequeno, vivia com os carrinhos enfileirados no chão, dizendo que era “dono de tudo”. Eu dizia “larga isso, menino”, e ele ria. Não sabia ele — nem eu — que esse “dono de tudo” ia virar verdade. Mas não essa verdade c***l. Não essa vida de medo e sangue.
Eu tentei. Ai, como eu tentei. Levei pra igreja, botei em escolinha de futebol, briguei com tudo e todos. Troquei ele de colégio três vezes. Mas a rua… a rua tem um poder que mãe nenhuma vence sozinha. Quando eu vi, já era. Já foi tarde.
— Senhor, me dá força. — murmurei, fazendo o sinal da cruz.
Na TV, a repórter falava em “maior operação dos últimos anos”. Mostrava soldados do BOPE descendo o morro, apontando arma. Mostrava caveirão passando onde eu comprava pão. E meu coração… batia como se fosse sair pela boca.
Lá fora, um vizinho gritou:
— Já pegaram um! Botaram no camburão!
As botas subindo e descendo a viela ecoavam aqui dentro como tambor de guerra. Eu tremia. Cada passo deles parecia estar vindo me buscar. E se for ele? E se meu filho…?
— Não, não, não… — comecei a chorar, baixinho, sem fazer barulho. — Jesus, pelo amor de Deus, não deixa matar meu filho. Pode ser bandido, pode ser o que for, mas é meu filho, Senhor.
Fui até o altar da sala, me ajoelhei de novo. A vela já tava no fim. A Bíblia aberta no Salmo 91, como sempre.
“Mil cairão ao teu lado, e dez mil à tua direita, mas tu não serás atingido…”
— Que seja ele, Senhor. Que essa palavra seja pra ele. — sussurrei com a testa encostada no chão.
A TV mudou o tom. Agora era “informações apontam que o líder do tráfico, conhecido como Gadernal, teria sido localizado”. Meu coração quase parou.
Thiago, o Gadernal. Meu filho e aquele nome maldito que colaram nele. Cortei o som da TV e fechei os olhos.
— Filho, onde você tá? — falei no vazio da sala. — Se tiver me ouvindo de algum lugar, saiba que tua mãe nunca parou de orar por você. Que eu rezo até hoje pra tu sair dessa vida. Mas se não sair… se for morrer… que morra de joelho pedindo perdão, que morra com Deus, que morra lembrando de mim.
Senti uma pontada no peito. A mesma que sinto desde a primeira vez que ele chegou em casa com corrente de ouro no pescoço e os olhos duros. Ele tentou esconder. Tentou sorrir como antes. Mas eu sabia. Mãe sente Desde aquele dia eu rezo por livramento. Lá fora, mais gritos.
— Tá cercado! Não tem pra onde fugir!
Me levantei num pulo. Olhei pela fresta da janela. Tiro. Grito. Cachorro latindo. Gente chorando. E a voz do povo ecoando:
— Pegaram o Gadernal!
Meu mundo escureceu por dois segundos.
— Jesus…
Sentei na beira da cama, sem força. Peguei o terço. As contas escorregavam pelos dedos molhados de suor. Liguei pra Penélope. Chamou, chamou, não atendeu.
— Fala comigo, menina… fala comigo.
Desliguei. Voltei a orar. A lembrança dele me invadiu sem pedir licença: Thiago de calça rasgada, correndo no barro, subindo na árvore pra pegar pipa, dizendo que ia me dar uma casa bonita um dia. Ele deu. Mas não com trabalho limpo. Deu com sangue, com medo, com silêncio. Me deram uma casa com azulejo na parede e pesadelo no travesseiro.
— Filho, volta pra mim. — murmurei. — Nem que seja pra cadeia, mas volta vivo.
Rezei mais um terço. A TV agora mostrava camburões descendo com sirene. Mostrava um corpo caído no chão, borrado. Gente correndo. Gente rezando como eu.
Eu não sou cega. Sei o que meu filho é. Sei do que ele é capaz. Mas não sou só mãe de bandido. Sou mãe. E mãe ama, mesmo quando não entende. Mesmo quando dói. Mesmo quando todo mundo quer que ela odeie.
Porque no fim do dia, quando o morro tá em guerra e os vizinhos gritam que “foi ele”, sou eu quem fecha os olhos e pede pra Deus:
— Se for pra morrer, Senhor… morre eu primeiro.
E ali, deitada no chão, sem saber se ele tava vivo ou morto, eu abracei a almofada como se fosse o colo dele. E orei. Como sempre. Como toda mãe de morro reza quando a guerra começa.
— Eu sei, Senhor… eu sei que eu fiz tudo que eu pude. — falei baixinho, sem nem saber mais se era oração ou desabafo.
Ouvia as vozes dos vizinhos aumentando lá fora. Um corre-corre. Gente subindo escada, gente gritando o nome dos filhos, mães batendo na porta dos outros perguntando quem viu quem.
Foi aí que escutei a voz dele, do meu marido e pai do Thiaguinho.
— Nádia! Nádia, sai daí, mulher! Tá maluca de ficar colada na janela? Se vier uma bala perdida, vai rasgar teu peito.
Ele entrou apressado, suado, rosto tenso, olhando pro lado como se alguém pudesse ouvir até os pensamentos dele. Eu nem respondi. Só apontei pra televisão.
— Tão dizendo que pegaram o nosso Thiago…
Ele fechou a cara na hora.
— Fala baixo! Tá maluca, mulher?
— Pegaram sim. Tá em tudo quanto é canal. Disseram que foi ele.
— Claro que não pegaram. — ele veio mais perto, sussurrando. — Tu sabe muito bem que ninguém pega o Thiago. Ele é ligeiro. Ele se preparou pra isso. Agora vem, sai da frente dessa janela. Vem comigo.
— Tu acha que eu consigo andar, homem?! — eu falei, com a voz trêmula.
Ele me puxou com jeitinho, mas firme. Me levou quase arrastada até o quartinho nos fundos, o da parede descascando, onde a gente guardava colchão velho e as caixas dos Natal passado. Me sentou ali, na beirinha da cama.
— Respira fundo. E para com essa choradeira. — ele disse, sem saber como esconder o próprio medo.
Peguei o celular com a mão trêmula. Abri o w******p. A última mensagem dele era de ontem. “Fica tranquila, mãe. Deus tá no comando.”
Cliquei em “ligar por vídeo”. Chamando… De novo. Chamando…
— Atende, meu Deus… atende, filho… pelo amor de Deus, me atende, Thiago… — eu chorava baixinho, o peito apertado.
Na terceira tentativa, a tela acendeu. Era ele! O rosto dele. O mesmo rosto que saiu da minha barriga, que eu vi crescer. Só que agora coberto de suor, com olheira funda, a testa suada. Mas era ele. Vivo.
— Mãe… — ele falou.
Na hora, eu desabei.
— Meu filho! — falei alto, chorando descontrolada. — Meu filho! Graças a Deus! Meu Deus, é você mesmo! É você, né?! É você?! Tão dizendo que pegaram, Thiago! Tão dizendo que mataram! Que foi preso! Que tu foi pego! Eu vi na TV, Thiago, eu vi!!
— Calma, mãe… — ele respirou fundo, falando baixo. — Calma. Sou eu. Olha aqui, ó. — ele virou a câmera pra mostrar o lugar onde tava.
— Eu tô vivo. Tá me vendo? — ele falou com aquele olhar sério, direto, de quem não podia dizer mais do que aquilo.
— Mas tão falando que é você! Que é o Gadernal que foi preso!
— E é mesmo. — ele deu um meio sorriso, debochado. — Eles acham que pegaram. Pegaram o que eu quis que pegassem. Mas eu tô aqui, mãe. Vivo. E não vão me pegar, entendeu?
— Meu Deus… meu Deus do céu… — eu chorava de novo, com a mão no coração. — Eu achei que eu tinha perdido você, filho. Eu achei que era o fim. Que tu tinha… que tinha morrido…
— Nunca, mãe. Não é hoje que eles vão me levar. A senhora me conhece. Eu me preparei pra isso. Eu tô seguro. Só não diz pra ninguém que falou comigo.
— Tá… tá bom… tá bom… — eu soluçava, limpando o rosto. — Eu só queria ouvir tua voz. Eu só queria saber que tu tá bem…
— E eu tô. Fica com Deus, tá? Se acalma aí. Toma um calmante. Fecha a cortina. Não fala com ninguém. E qualquer coisa, a Penélope te avisa.
— Penélope tá bem? O Renan tá aí né?
— Ta, ele tá aqui comigo. Tá, tá segura. Todo mundo que é meu tá seguro. Só fica em silêncio. É isso que vai proteger vocês.
Ele ia desligar, mas parou.
— Mãezinha…
— Oi…
— Te amo, tá?
— Eu também te amo, meu filho. Que Deus te proteja. E que ele te perdoe também… porque eu não quero te perder.
A chamada caiu. Fiquei ali, abraçada com o celular, como se fosse ele. Chorei mais um pouco. Mas agora… com um pouco de alívio no meio da dor. Ele tava vivo. E enquanto ele tiver respirando, eu vou continuar rezando.
Porque se o mundo quer que eu odeie o Gadernal, azar o deles. Eu só sei amar o Thiago. O meu filho. E esse… esse nunca saiu de dentro do meu peito.