Gadernal narrando
Hoje o dia no Complexo tava suave. Céu meio fechado, mas quebrada respirando. Eu, de bermuda, sem camisa, cordão pesando no peito, eu e meu cria Playboy no alto da minha casa, fumando e resolvendo os bagulho da boca, conferindo giro, radinho, conta de carga, quem entra, quem sai. Até meu celular virar com o salve do X9 que eu pago todo mês:
X9: “Amanhã, 5h da manhã, operação grande. Caveira, Core, Choque, PRF. Alemão e Penha. Se prepara.”
Eu li duas vezes, sem piscar. Aí olhei pro Playboy. Ele entendeu sem eu precisar falar nada.
— Vem pesado? — ele perguntou, encostando o fuzil no corrimão.
— Vem. Mas quanto pesado, eu ainda não sei.
Desci a escada de cimento já calculando tudo na cabeça. Quando esse tipo de coisa vaza, é porque alguém do outro lado tá com a mão esticada por fora. Sempre tem. O que ninguém fala é o tamanho do estrago. E tamanho, irmão… tamanho muda tudo.
Primeira coisa: tirar a Penélope do morro.
Entrei no quarto. Ela tava deitada vendo vídeo, loira gelada, barriga chapada, unha feita, tatuagem na costela e na coxa, mega até o cu, mulher de bandido mesmo, mente quente, coração gelado quando precisa. E com a mania que tá me irritando: querer ser mais homem que eu.
— Levanta. — falei seco. — Hoje tu vai descer. Vai pra um hotel na Barra. Pega a mala pequena, documento e fica invisível.
Ela me encarou com aquele deboche dela.
— Invisível? Logo eu? — riu. — Tu esqueceu com quem tu casou, Thiago? Eu quero ficar! Quero ver caveira gritar.
— Esther, não dá show. — Respirei fundo. — Amanhã a escola fecha, a rua tranca, o helicóptero vai passar na minha cabeça. Não é dia de ego. É dia de estratégia.
— Estratégia é eu do teu lado. — levantou, ajeitando o top, peito duro de silicone que eu paguei encarando o espelho. — Tu sabe que mulher na pista comigo é problema. Se encostar, eu raspo cabeça, eu boto arma na cara, eu derrubo no parapeito…
— Chega. — cortei, olhando no olho. — Eu mando tu descer, tu desce. Não vou discutir ciúme em véspera de operação. Vai pro hotel, fica off hoje. Se precisar, eu te chamo pô.
Ela apertou a boca, jogou meia dúzia de top dentro da bolsa, perfume, arma pequena no fundo (eu vi, mas fingi que não), e saiu batendo a porta. No corredor, ainda soltou sem virar:
— Só não me faz te buscar no IML, tá, amor?
Playboy riu baixo da cozinha.
— Essa daí te mata e te enterra beijando a tua testa, chefia.
— Cala a boca, Playboy. — mas eu ri também. Eu conheço a fera que criei.
Segunda coisa: meus velhos.
Eles moram noutro canto do Complexo, casa que eu transformei num casarão, mas é a mesma que me viu pequeno, correndo de pipa e bala perdida. Botei o telefone no ouvido, chamada de vídeo pra minha mãe. Ela atendeu com o avental, cabelo preso, dedo de farinha de trigo.
— Thiago, o que foi? Tua cara tá r**m. — ela me conhece como ninguém sem nem eu abrir a boca.
— Mãe, amanhã o bagulho vai ficar doido. Cinco da manhã, avisa o pai. Desce pra casa da tia no asfalto, da pra dormir fora hoje.
Ela respirou, mexeu no pano da mão. Eu vi o medo no olho e vi também a teimosia dela.
— E tu, vai sair do morro?
— Não. Só a Esther que já foi.
— Então eu também não vou.
— Mãe, por favor… — baixei a voz. — Se acontecer alguma coisa…
— Se acontecer alguma coisa contigo, eu vou tá aqui do mesmo jeito. — ela cortou. — Tu acha que eu vou dormir em lençol cheiroso sabendo que meu filho tá preso num buraco escuro? Nem morta.
Meu pai entrou no quadro, voz de comando, mão pesada no ombro dela.
— Deixa de cena, mulher. Se o menino manda, a gente vai.
— Ele não vai. — minha mãe encarou a câmera de novo. — Ele vai ficar. Se ele fica, eu fico.
Eu fechei os olhos um segundo. Mãe é mãe. Eu posso mandar na p***a do morro todo; em casa, quem manda é ela.
— Então tranca as janelas, apaga a luz antes do horário e não abre pra ninguém. Qualquer coisa, me chama sussurrando no zap. Eu vou tá on.
— Deus te guarde, meu filho. — ela fez o sinal. — Que Deus te abençoe.
— Te amo.
— Mais.
Desliguei. O peito já tava pesado, mas a mente seguia limpa. Plano pronto. Juntei a tropa que ainda tava por perto, passei orientação, distribuí posição, botei dinheiro no bolso de quem ia segurar família se desse r**m. Dei perda em fofoqueiro. E espalhei silêncio.
Quando deu duas e quarenta, a Penélope mandou foto da chave do hotel e um “cheguei.” Bom, uma peça a menos pra me distrair.
Três e cinquenta: molhei a cara, fiquei na laje olhando o morro dormir.
Quatro e quarenta e oito: chegou outra mensagem do X9.
“Mudaram a hora. Vão antecipar. Cinco em ponto.”
Cinco e um: o ar rasgou.
O helicóptero da caveira sentou no céu com os dentes de fora, jogando vento na telha, foco de holofote varrendo o beco. Caveirão lá embaixo roncou a alma da rua. Choque nos acessos. PRF na pista. Core enfiando a cara onde não costumava.
— É agora. — falei, e o Playboy já tava no meu passo, Glock na minha, fuzil no colo dele.
A rua mudou de cor. Tiro acendeu o escuro. Radinho estourou no meu ouvido:
— GADERNAL, TÁ VINDO MUITO!
— TEM EFETIVO NO IP E NA GROOTA!
— QUEBRARAM O POSTO DO ADEUS!
— CHEFIA, TEM CAVEIRÃO ENTRANDO PELO MORRO DO ALEMÃO!
A gente desceu. Não tem romance aqui. Tem metal, pólvora, barulho. Eu lutei por cada metro de viela. Vi cria cair com o olhar me pedindo desculpa. Vi segurança meu tapar buraco com o peito. Vi menor perdido correndo de chinelo. E eu ali, frio, calculando esquina, mandando voltar, mandando abrir, mandando fechar.
A primeira hora foi resistência. A segunda virou m******e. Blindado engoliu a ladeira como se fosse reta. Lá em cima, ouviram dizer que tinha “tanque” — pra mãe aflita, tudo que tem ferro e roda é tanque. O som que veio do asfalto me gelou. Tinha peça que eu não tava acostumado a ouvir aqui.
— CHEFIA, TEM MUITO, MUITO HOMEM! — gritou o radinho. — É FRENTE E COSTA!
O Playboy me puxou pelo colete.
— Vamo embora, c*****o! Não tem como segurar isso aqui hoje.
— Ainda dá pra segurar a Grota se abrir… — comecei.
— Dá o c*****o! — ele berrou, vermelho, o olho estourado. — Olha quanto dos nossos já caiu! Eu contei mais de cinquenta só nesses dois becos. Vamo!
Eu sei quando o orgulho vai custar gente. Eu sei. Engoli o gosto de ferro da boca, dei dois tiros pro alto pra limpar a reta e voltei pela flecha de casa. O radinho bufava notícia r**m: apreensão, prisão, queda. O número se empilhando na minha cabeça igual sacola em dia de feira.
Subi os três lances do meu casarão com o corpo quente e a mente fria. Fechamos a porta. Playboy já sabia o caminho. A gente atravessou a sala, abriu o alçapão camuflado, grama sintética por cima, trinco discreto por baixo e desceu. O chão virou ferro. O cheiro mudou. Porta de chapa. Vedação. Câmera. Monitor mostrando quatro cantos do meu pedaço. Geladeira com água, suco, energético. Armário com biscoito, lata, miojo. Carregador pendurado, dois PCs ligados numa bateria que dura dias. Falta luz? Aqui não falta nada.
— Fecha tudo. — falei.
Playboy trancou, passou a barra, conferiu a borracha da vedação, engatilhou o fuzil e sentou ao meu lado. O bunker calou o mundo lá fora. Só ficou o grave de helicóptero que a parede não segura, e o bip discreto das telas.
Abri o w******p com o dedo tremendo que ninguém jamais ia ver.
Pra mãe: “Tô aqui.”.”
Ela respondeu em áudio curto, chorando sem querer que eu ouvisse.
“Meu filho, o que é isso que tá acontecendo Thiago? Pelo amor de Deus, sai dessa vida meu amor..”
Eu engoli o choro, respirei fundo e fiquei quieto um pouco.
Pra Penélope: “NÃO FALA COM NINGUÉM! Finge que sumiu, não seja otaria.”
Penélope: “Se tu cair, eu subo com o d***o pela mão e quebro o estado inteiro.”
O capeta já é essa mulher po.
As horas foram passando, e as telas mostravam o que eu não queria ver: corpos recolhidos, fila de preso, arma em cima de mesa, drone lambendo telhado. O narrador da TV repetia número como se fosse placar de jogo. Eu anotei com a caneta no tampo, riscando do jeito que só eu entendo:
• 110 localizados sem vida (e eu sei que tem mais perdido em mato e beco);
• 86 detidos (pelo que o rádio pequeno pegou na frequência da pista);
• Pontos tomados: IP, Grota, Adeus, Morro do Alemão;
• Acessos fechados no asfalto.
Playboy ficou quieto, os olhos pesados, mão firme no fuzil. Ele também perdeu irmão hoje. Eu perdi filho que o morro me deu. E, mesmo assim, eu não quebro. A diferença do chefe pra tropa é que a dor do chefe não tem grito. Tem plano.
— Eles acham que ganharam — falei baixo, pro ferro da parede me devolver a minha própria voz. — Mas eu tô vivo. E enquanto eu estiver vivo, isso aqui não acaba.
Playboy assentiu, seco.
— A gente vai voltar diferente. — ele disse. — Mais fino. Mais duro.
— A gente vai voltar certo. — corrigi. — Sem excesso, sem fama, sem vídeo. Vai ter luto pra cada um dos nossos. E vai ter o dobro de silêncio.
O bunker é frio, mas meu corpo tava quente. Lá fora, o Alemão tremeu de sirene. Aqui dentro, eu pensei. Puxei um caderno velho e comecei a mapear o erro: onde a gente tava exposto, qual foi a falha, quem falou mais do que devia, que caminho nunca mais a gente pisa.
No final, encostei a cabeça, fechei os olhos um minuto. A imagem que veio foi minha mãe na janela sem abrir, rezando em silêncio, e eu pequeno correndo na laje com o joelho arranhado. Abri os olhos e vi o homem que sobrou: dono de tudo. Chefe de guerra. Filho da dona Maria.
Eu baixo a cabeça pra dois: minha mãe e meu pai. Pro estado? Nunca.
Amanhã, quando o sol nascer e o helicóptero cansar, eu saio desse buraco. Vou contar meus mortos por nome, vou abraçar quem sobrou e reerguer o que é meu.
Hoje, eu respiro. Amanhã, eu governo. E quem achar que o Complexo ficou sem dono, aprende agora a palavra que mantém favela de pé: Gadernal.