NOITE NO TURANO

1180 Words
Capítulo 1 Narrado por Marratimah Era sexta. Daquelas que o morro inteiro sabia que ia ferver. A batida do 150 já subia pela ladeira como tambor de guerra, anunciando que o baile ia começar. No Turano, baile não é festa. É ritual. É onde os inimigos caem e os fiéis se consagram. Minha quebrada tava blindada. Cria em cada viela, cada entrada do morro era um checkpoint. Subia só quem tinha o nome limpo. Quem devia, pagava antes de botar o pé ali. E quem vacilasse... era chão. Sem papo. Desci do meu barraco de camisa aberta, peito cheio de corrente de ouro, bermuda da Lacoste e tênis da nike. Glock presa na cintura, com o pente estendido aparecendo por baixo do pano. Marratimah não anda armado por estilo. É sobrevivência. Respeito. Comando. Quando cheguei na quadra, o som já tava no talo. DJ Tody no comando. som girando funk proibidão misturado com umas batidas de drill. Mó vibe. A fumaça do baseado se misturava com o cheiro de cerveja quente e perfume barato. As novinha tudo rebolando até o chão, e os cria jogando dinheiro pro alto, como se não fosse nada. No canto direito da quadra, vi os aliados chegando. Primeiro foi o Big Joel, meu braço direito. Cria do Turano, gigante, uns 2 metros de altura e 120 quilos de puro ódio. Tava com o casaco da Puma aberto, pistola na cintura e olhar de pitbull sem corrente. — Fala, chefia! — gritou ele, me cumprimentando com aquele aperto de mão que só quem já matou junto entende. Depois veio o Sucrilho, nosso olheiro. Magrelo, rápido, sempre com aquele radinho colado na orelha e um boné que nunca tirava nem pra dormir. Ele veio correndo. — Tudo certo nas entradas. Os cara da Rocinha nem passaram perto. Certeza que tão com o cu na mão — falou, rindo. — Deixa eles. Se subir, vai ser caixão fechado — eu disse, puxando o baseado da boca e passando pro Big Joel. O baile tava sinistro. As mina tudo no grau. Roupinha colada, glitter na pele, olhando pra mim como se eu fosse Deus. Mas não era nenhuma delas que me deixava cabreiro. Meu peito tava pesado desde que vi aquela menina na entrada do morro, dois dias antes. Dandara. Nome de princesa guerreira. Mas o olhar era de quem já perdeu todas as batalhas. Ela subiu com os pais, dois trapo humano. O cara parecia um zumbi, todo tremendo, suado, fedendo a crack. A mulher dele, desdentada, com as veia tudo marcadas de tanta agulha. E no meio daquele caos... ela. loira, cabelo ondulado até a cintura, olhar firme, mas carregado de tristeza. Devia ter uns 17, 18 anos no máximo. gostosinha, com um corpo que denunciava a mulher que tava ali, sufocada. Quando passou por mim, abaixou a cabeça. Mas eu vi. Vi os roxos no braço. A marca no pescoço. O medo estampado nos olhos. Ela nem sabia quem eu era. Mas eu sabia quem ela era. Porque dor, parceiro, a gente reconhece de longe. E aquilo me incomodou. Mexeu comigo. Me deu vontade de saber o nome dela, de saber se comia, se dormia, se sonhava. Mas no baile... no baile eu era Marratimah. Dono do morro. Responsa. Sem tempo pra drama. Ou pelo menos era o que eu dizia pra mim mesmo. — Marratimah! — gritou o n***o da Reta, vindo lá do canto da quadra, com uma garrafa de uísque na mão. — Os cria da Vila Cruzeiro tão aí, pediram pra trocar ideia contigo. Fiz um gesto com a mão e fui até eles. Quatro moleque alinhado, camisa da Oakley, cordão de prata, tudo de fuzil pendurado. Cumprimentei cada um com firmeza. O líder deles, o Mil Grau, olhou nos meus olhos. — Vim pra fechar contigo. Se o bonde da Rocinha tentar subir, nós desce com tudo. Sem pestanejar. — Fechado. Mas só quero ação se precisar. Esse morro tem dono, e sou eu que dou a ordem. — respondi seco, mas com respeito. Depois que eles saíram, voltei pro meu canto. O som mudou. Agora era “Set DJ RD”. As mina ficaram louca. Subiram no palco, começaram a descer até o chão como se fosse culto satânico. O povo gritava, vibrava, cuspia bebida pra cima. Era caos. Era poder. Vi o Big Joel no canto, de papo com a Bibi, a traficante da Serrinha. Aquela mina era sangue no olho. Já mandou cortar a língua por fofoca. Mas por incrível que pareça, gostava de mim. Disse uma vez que eu tinha o olhar igual ao do pai dela, que era miliciano. — Marratimah, já viu a novinha nova do morro? A que chegou com os dois zumbis? — ela perguntou com aquele sorriso venenoso. Assenti, sem disfarçar muito. — Aquela ali vai dar problema. Vi os olheiro da barreira de olho nela hoje cedo. Diz que os pai dela vendem ela por pedra. Meu sangue ferveu na hora. — Se algum desses filha da p**a botar a mão nela, vai sumir do mapa. E nem vai ser enterrado. Vai virar alimento de porco no matagal. Bibi sorriu. Gosta de ver quando eu perco o controle. Filha da p**a. Já passava das três da manhã quando o baile começou a esvaziar. A favela ainda pulsava, mas os ânimos tavam mais calmos. Foi quando vi ela.a Dandara. Tava sentada no canto da quadra, sozinha, com um copo de refrigerante quente na mão. A saia curta escondia m*l as coxas grosas. O olhar perdido. Vi o pai dela lá em cima, na laje, fumando pedra com outros trastes. A mãe? Nem sinal. Me aproximei. Devagar. — Cê mora aqui no Turano agora? — soltei. Ela olhou pra mim, assustada. Engoliu seco. — Moro. Lá na rua de trás, barraco 12. — respondeu baixinho. — Teus pais são os que chegaram anteontem? Ela assentiu. Fiquei em silêncio por uns segundos. O som baixo ainda tocava, a fumaça ainda dançava no ar. — Meu nome é Marratimah. Se alguém mexer contigo, me procura. — falei, sem firula. Ela me encarou. Pela primeira vez, sem medo. — Por quê? — Porque ninguém mexe com quem é do meu morro. E cê é do meu morro agora. Ela baixou os olhos. Um fio de lágrima escorreu, mas ela limpou rápido. — Obrigada. Virei as costas e fui embora. O coração apertado. O peito cheio de raiva. E a certeza de que aquela menina ainda ia mudar minha vida — de um jeito ou de outro. Quando cheguei no alto do morro, Big Joel já me esperava com o radinho na mão. — Problema, chefia. Tem um comboio da Civil se movendo em direção à entrada do Turano. Parece que tão vindo fazer limpa. — Liga os radinho. Ninguém dorme. O baile foi só o começo. Hoje o Turano vai provar de novo quem é que manda nessa p***a. Acendi outro baseado. O rosto da Dandara voltou à minha mente. Se ela soubesse o que tava prestes a viver... Mas isso era só o começo.
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