Alemão
Estava sentado no posto, sem nada pra fazer. Os papéis estavam em ordem, as contas fechadas, e eu ali, só olhando para as paredes. O morro Vai Quem Quer podia ser movimentado, mas às vezes, no meio do dia, tinha esses momentos de silêncio.
Navalha estava sentado ao lado, lendo um artigo científico. O cara fazia direito. Direito. Um traficante que seria advogado. E o Tenente? Fazia medicina. Isso me fazia pensar como o morro Vai Quem Quer era diferente. Não era só um lugar de sobrevivência, era um lugar onde as pessoas tentavam algo maior.
Enquanto eu divagava, uma mulher apareceu na porta. Tinha um olhar desconfiado, mas o tom de quem precisava de ajuda.
— O Capitão tá? — perguntou, segurando a bolsa com força.
— Não, não. Só mais tarde — respondi, direto.
— Queria ver com ele um dinheiro emprestado...
Olhei pra Navalha, esperando que ele se metesse, porque ele era irmão do capitão.. mas o cara tava com um fone no ouvido, escutando ópera enquanto estudava, Não ia sobrar pra ele. Ia sobrar pra mim.
— Pra que é o dinheiro? — perguntei, tentando manter o tom sério.
— Pra remédio. Tem uma pessoa doente...
Saquei que era enrolação. O Capitão sempre ajudava quem tava realmente precisando, quem não tinha grana pra remédio ou comida. Mas ele não era banco, não bancava festa ou luxo de ninguém. Isso, só a fiel dele podia pedir.
— Remédio de quem, po.rra? — retruquei, já sem paciência. — Não tô aqui pra aceitar lorota.
Ela deu um passo à frente, abaixando o tom da voz.
— Eu posso agradar em troca do dinheiro, Alemão. Sou boa nisso, você não tem ideia...
Aquilo me deixou pior. Levantei devagar, encarando ela.
— Não tô afim de agrado. Rala o peito daqui antes que eu perca o pouco de paciência que me resta.
Ela saiu rápido, sem dizer mais nada, sumindo pelo caminho. Aquilo era desnecessário, mas era parte do que o morro trazia. Quando saí de casa .. minha linguagem era polida, cheia de educação. Mas o tempo na rua e no morro me fez perder o jeito, aprendi gírias, perdi o tom formal. Era o que precisava pra sobreviver aqui.
Voltei pro meu lugar e sentei de novo.
Mas, cansado de ficar sentado, resolvi caminhar pelo morro. O sol estava forte, e, na praça central, alguns dos garotos estavam pintando os bancos e capinando o mato que insistia em crescer entre as pedras do calçamento. Não recebiam nada por isso, nenhum trocado. Era o Capitão que dava a eles o básico: uma chuteira decente, um uniforme de futebol, comida na mesa, calçado bom e até o material escolar. Em troca, o trabalho deles era cuidar da praça, do que mais precisasse no morro.
O serviço era pesado, mas ninguém reclamava. A maioria via isso como uma chance de fazer algo útil e, quem sabe, sair do buraco. Vi um deles tentando arrancar uma pedra maior do chão, com as mãos pequenas lutando contra a resistência. Me aproximei, achando que talvez ajudar me fizesse bem. Meu corpo precisava se mexer, e minha cabeça precisava de algo pra distrair.
— Deixa que eu te ajudo, moleque — falei, enquanto pegava a pá de um canto.
— Valeu, Alemão — respondeu ele, com um sorriso aliviado.
Comecei a cavar ao redor da pedra. Era bom sentir o corpo em movimento, fazer algo que exigisse força física em vez de deixar minha mente girando em círculos. Aos poucos, outros garotos vieram ajudar, até que a pedra finalmente saiu do lugar.
— Tá vendo? Em equipe é mais fácil — disse eu, deixando a pá de lado.
Eles riram e voltaram ao trabalho, pintando os bancos, varrendo a praça e ajeitando as plantas que Dona Cida trouxe do quintal dela.
Fiquei ali por um tempo, ajudando no que dava, pegando um banco aqui, movendo uma pedra ali. Não era muito, mas pelo menos tirava a sensação de inutilidade que vinha me perseguindo nos últimos dias. O morro era cheio de problemas, mas também tinha esses momentos de simplicidade, de gente se esforçando pra melhorar o que tinha.
Quando terminei, sentei num canto da praça, respirando fundo e sentindo o cansaço no corpo. Um dos garotos trouxe uma garrafa d'água e dividiu comigo.
— Valeu, Alemão. Se você não tivesse ajudado, a gente ainda tava lá tentando arrancar aquela pedra.
Dei de ombros, bebendo a água.
— Não foi nada. Vocês que tão fazendo o trabalho de verdade.
Fiquei ali por mais um tempo, observando os garotos terminarem o serviço.
Um dos garotos se aproximou, meio tímido, mas decidido.
— O Capitão disse que tu é bom de matemática.
Dei um sorriso ..
— Sou, excelente. Por quê?
— Podia dar aula de reforço pra gente. Tem uns querendo fazer o vestibular, o Enem. Vai ter curso de contabilidade no instituto federal lá do asfalto, mas eu sou ru.im de conta. Sei o básico, mas fração, equação e essas paradas me quebram.
Olhei para ele, avaliando a seriedade no pedido. Era uma coisa que eu não esperava, mas ao mesmo tempo fazia sentido. Esses moleques tinham ambição, queriam estudar, isso era muito pelo capitão que não permitia que os garotos usassem drog@as no comando dele, o negócios do capitão eram maiores do que viciar garotos.
— Monte um grupo — comecei, já pensando em como organizar. — Na verdade, divida o grupo em dois lotes. Um pra quem tem de 12 a 15 anos e outro pra quem tem 16 pra cima.
Ele escutava com atenção, acenando com a cabeça.
— Ofereço as aulas na casa vazia do Tenente. Avisa os outros, mas tem que fazer a lista direito pra organizar. Eu compro o material, mas quem fizer bagunça ou aparecer fumando, coloco pra fora na hora.
Os olhos dele brilharam. Ele parecia surpreso com minha resposta, como se não esperasse que eu realmente fosse topar.
— Valeu, Alemão! Vou organizar isso hoje mesmo. Vou falar com a galera... e não vou fumar, não.
Dei um leve aceno e vi ele sair correndo, empolgado. Fiquei pensando na cena. Nunca imaginei que acabaria dando aula pra molecada. Mas talvez fosse isso que eles precisassem. E, pra ser honesto, talvez fosse isso que eu precisasse também. Um motivo pra colocar minha mente em algo produtivo, um respiro no meio da escuridão que me seguia.
Levantei e fui embora, mas caminhei para fora do morro, precisava vê-la.