Casamento

1015 Words
Alemão O morro Vai Quem Quer tinha suas próprias regras, mas também seus momentos de celebração. Naquela semana, haveria um casamento no morro, e casamento por aqui era sinônimo de festa, bebida e muita comida. E comida de verdade. Essa realidade ainda me surpreendia, mesmo depois de tanto tempo. No asfalto, casamentos eram eventos elegantes, com pratos refinados, mas em porções minúsculas. Aqui, era diferente: arroz, carne assada, uma salada bem temperada e fartura. Eu gostava da comida. Não tinha frescura, era simples, direto e satisfatório. A noiva era filha de Dona Cida, uma das moradoras mais antigas do morro, e o noivo era do asfalto. Antes de subir, o cara teve que encarar o Capitão Nascimento cara a cara, pedindo permissão para morar ali. Tinha que admitir, o sujeito era corajoso. Não era qualquer um que enfrentava o Capitão. Eu só soube que estava convidado quando um garoto do morro me entregou o convite, um pedaço de papel dobrado, com o meu apelido escrito de forma desajeitada. — É hoje à noite, Alemão. Minha mãe disse que você tem que ir — disse o garoto antes de sair correndo. Por algum motivo, decidi ir. Talvez fosse curiosidade, talvez fosse só a necessidade de escapar da minha própria cabeça, nem que fosse por algumas horas. Quando a noite chegou, o espaço reservado para a cerimônia estava iluminado por luzes improvisadas, com fitas coloridas balançando ao som da música. Eu fui. Talvez ver gente, ver alegria, me ajudasse a organizar a loucura da minha mente. Sentei perto do Capitão e do Navalha, em um canto discreto. O Capitão estava com a sua criança ao lado, o carrinho de bebê estacionado junto à mesa, e bebia água. No colo dele, estava o afilhado, brincando com os botões da camisa. Era um retrato que poucos veriam do homem que comandava o morro com mão de ferro.Mas meu peito doeu ao ver as crianças ali. Eu quis ser pai. Na verdade, eu deveria estar esperando minha criança também, se tudo não tivesse desmoronado. Era isso que tínhamos combinado. Eu tinha até comprado roupas amarelas para esperar. Porque eu queria um filho com Elize. Como eu queria. Quando a noiva apareceu, acompanhada pela mãe, o clima mudou. Todo mundo se levantou, e os olhares se voltaram para ela. O vestido era simples, mas bonito, e ela carregava um buquê de flores que, com certeza, veio de algum jardim improvisado do morro. O noivo estava nervoso, esperando no altar improvisado. A cerimônia foi rápida. O pastor do morro conduziu tudo com seriedade, mas o que me pegou de surpresa foi o momento em que os dois trocaram votos. O noivo prometeu proteger a esposa, dar a ela uma vida melhor e nunca abandoná-la. Suas palavras me acertaram como um soco. Era impossível não pensar no meu próprio casamento, nas promessas que eu fiz e que, de alguma forma, deixei de cumprir. Depois disso, a festa começou. A comida era exatamente como eu imaginei: simples, mas deliciosa e farta. A música alta embalava as pessoas que se divertiam como se o mundo lá fora não existisse. Algumas mulheres tentaram puxar conversa comigo, mas eu me afastava. Minha mente estava longe, voltando sempre para o mesmo lugar: Elize. Em determinado momento, a sogra do Tenente Marcelo se aproximou e sentou ao meu lado. Ela ficou em silêncio por um tempo, observando a festa. Não era uma mulher de muitas palavras, mas, quando falava, era difícil ignorar. — Sabe, Alemão — disse ela, sem me olhar. — Casamento é bonito de ver. Mas manter um... isso é que é o verdadeiro desafio. Essa celebração aqui, é a parte fácil. Eu não respondi, mas ela continuou, com a voz baixa e firme. — Você ainda tá preso ao passado. Eu vejo. Mas tem que decidir: ou deixa o passado lá, ou faz algo com ele. Porque ficar parado no meio do caminho não vai te levar a lugar nenhum. Ela se levantou sem esperar resposta, voltando para onde estava a família. Suas palavras ecoaram na minha cabeça, enquanto eu observava o fim da festa, com a música diminuindo e o pessoal começando a ir embora. Fiquei ali, sentado, por mais algum tempo. Aquele casamento, tão simples, trouxe uma enxurrada de memórias e dúvidas. Talvez ela estivesse certa. Talvez fosse hora de decidir o que fazer com tudo que eu ainda carregava. Mas, naquela noite, não tomei nenhuma decisão. Apenas voltei para a minha quitinete, com a mente pesada e o coração confuso. Naquela noite, voltei para casa e, pela primeira vez em muito tempo, não bebi nada. Nem um gole. Apenas sentei na porta da quitinete, encarando o silêncio da rua. O vento fresco da madrugada passava, mas minha mente continuava agitada, como se uma tempestade estivesse presa dentro de mim. Fiquei ali, sentado, até o corpo ceder ao cansaço. Dormi por um tempo curto, um sono interrompido, mas foi o suficiente para que os pensamentos voltassem ainda mais fortes quando acordei. Eu não consegui entrar. Ficar do lado de fora parecia mais fácil do que encarar as paredes. Eu sabia que precisava tomar uma decisão. Não dava mais para ficar nesse limbo, me torturando com o passado. Mas era difícil. Por.ra, era difícil. Eu a queria. Queria sentir o cheiro dela de novo, ouvir sua voz, olhar nos olhos dela. Queria que ela me curasse de tudo isso. Mas como? Como eu podia voltar para ela depois de tudo? A mulher tinha me traído. Eu vi. Não era algo que outra pessoa me contou. Eu estava lá. E agora, depois de tudo, o que restava de mim queria rastejar de volta, como um cão sarnento implorando por migalhas. Passei a noite inteira sentado ali, lutando contra mim mesmo. O homem que eu era antes e o homem que eu tinha me tornado brigavam dentro de mim. Eu sabia que, de uma forma ou de outra, teria que decidir. Mas, naquela madrugada, tudo que eu consegui foi continuar parado, perdido entre o desejo de tê-la de volta e o ódio por ela ter me destruído.
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