Alemão
Estou na minha quitinete, sentado na cama que ocupa quase todo o espaço. A luz fraca do abajur ilumina o lugar enquanto mexo nos papéis que trouxe do posto. A garrafa de uísque está pela metade na mesinha ao lado, mas hoje nem beber eu quero. O cansaço mental é maior que qualquer desejo de entorpecer a mente.
O telefone toca, quebrando o silêncio. Atendo no segundo toque, direto, sem paciência para enrolação.
— Fala.
— É o Alemão? — a voz do outro lado é firme, mas educada, com um leve sotaque que não consigo identificar. — Aqui é o Adelson.
Adelson. Não o conheço pessoalmente, mas já ouvi falar. Um nome que circula em algumas conversas discretas. Um homem com dinheiro, poder e uma reputação incerta. O que sei dele? Que ele já esteve, ou talvez ainda esteja, ligado ao PCC. Não tenho provas, mas os rumores são suficientes para me deixar alerta.
— Sou eu. O que quer? — pergunto, mantendo o tom seco.
— Estou interessado no seu trabalho. Ouvi dizer que você é o melhor na sua área. Preciso de alguém para cuidar das minhas finanças e organizar a entrada de dinheiro em um morro que pretendo assumir.
Ele fala como se estivesse pedindo um favor qualquer, mas cada palavra tem peso. Trabalhar para alguém assim é um risco, e eu não sou i****a. Mesmo que o dinheiro seja bom, minha lealdade ainda está com o Capitão.
— Não costumo mudar de lado — respondo, avaliando cada palavra. — Já tenho meus compromissos.
— Isso eu sei — diz ele, tranquilo demais, como se já esperasse minha resposta. — Mas ninguém recusa uma oportunidade de crescer. Vou deixar a oferta em aberto. E não precisa mudar de lado. Conheço o Capitão Nascimento e posso me entender com ele. Continua no morro dele e trabalha pra mim também. Pago bem, tanto quanto ele.
A linha cai antes que eu possa responder. Seguro o celular, sentindo o peso das palavras dele. O cara é perigoso, isso é claro. Não sei se ele está apenas sondando ou se já tem algo mais planejado.
Coloco o telefone de lado e volto a olhar para os papéis. Não posso me distrair. Trabalho para o Capitão, e minha prioridade é ele. Mas Adelson agora está no meu radar, e algo me diz que essa ligação não será a última.
Quando termino o que precisava, deixo o lugar para espairecer. Vou jogar sinuca com os homens no bar do morro. Ganho algumas partidas, bebo algumas cervejas, mas, mesmo no meio da conversa e risadas, algo em mim ainda está inquieto.
Depois de um tempo, desço o morro. Não sei bem por quê, mas meus pés parecem ter vontade própria. Quando percebo, estou parado na frente da casa que construí com tanto cuidado e amor. A casa que fiz pra ela.
Fico ali por algumas horas, em pé, vendo a luz fraca acesa no andar de cima. A silhueta dela passa pela janela, e minha garganta aperta. Ela ainda é como uma âncora para mim, algo que me prende, me atrai e me tortura ao mesmo tempo. Corro os dedos pelo bolso, procurando um cigarro, mas desisto. O nó no peito não é algo que a fumaça possa resolver.
Olho mais uma vez para a janela, a luz, a sombra dela. Como pode ser? Como uma mulher pode ter me destruído tanto, e ainda assim me fazer sentir tanto? Eu queria entrar, queria chamá-la, mas sei que não posso. Não agora. Então fico ali, no silêncio da noite, até a coragem me faltar e os passos me levarem de volta à escuridão.
Subo o morro, o lugar que agora chamo de lar, era dia de baile. Quando entro no espaço da festa, um funk toca alto. Não era daqueles proibidões que eu preferia, com letras que exaltavam o poder do comando ou histórias de batalhas. Era diferente.
Era um funk que falava de amor, da dor de um homem que deu tudo para uma garota e não recebeu nada em troca. Cada verso parecia me atingir como uma facada no peito. A música me engoliu inteiro, cada palavra reabriu uma ferida que eu tentava ignorar.
Me sentei em um canto, afastado da pista, tentando me camuflar no ambiente. Um dos caras do morro me trouxe uma cerveja, mais por respeito do que por amizade. Ser parte do comando trazia certas vantagens, mas também exigia muito de mim. Aceitei a cerveja, tentando parecer mais relaxado do que realmente estava.
Enquanto bebia, senti um peso no pé. Olhei para baixo e vi que alguém tinha pisado em mim. Era o que faltava para a noite descambar. Me levantei rápido, pronto para começar uma briga. Quando olhei para cima, me deparei com os olhos assustados de um garoto, magro, franzino, que não devia ter mais de dezoito anos. Ele levantou as mãos em sinal de rendição.
— Não foi por querer, eu só tropequei...
A vontade de brigar evaporou. Não fazia sentido quebrar um garoto sem treinamento, que claramente não tinha a mínima intenção de me desrespeitar. E ninguém iria interferir se eu fizesse algo, porque eu fazia parte do comando. Mas naquele momento, me sentei de volta e deixei o garoto ir.
Por mais raiva que eu carregasse dentro de mim, sabia que precisava ter algum limite. Ter sido co.rno não justificava descontar minha frustração em qualquer um que cruzasse meu caminho. Além disso, o Capitão não aprovava esse tipo de ação. Ele era justo. Não matava por nada, mas também não levava desaforo para casa.
O Capitão limpou o morro de muita gente, mas sempre teve um código. E ele não hesitaria em me punir se eu quebrasse ou matasse um garoto simplesmente porque ele pisou no meu pé. Pelo menos isso eu tinha aprendido: era preciso ter controle. Por mais que o peso do mundo me esmagasse, havia regras. E eu precisava respeitá-las.