Quebrando o Protocolo

629 Words
Rael Eu estava indo para o bar do seu Manuel, um dos pontos de encontro do morro, quando a vi saindo da casa da Dona Neide. Estava com uma sacola de feira na mão, lutando para subir a ladeira com o peso. Quase me permitir sorri com a cena. Pequena, frágil e mesmo assim determinada. Era a minha chance. Queria uma desculpa para me aproximar. Diminuí o passo, fazendo parecer que era um encontro casual. Meus "crias", que me seguiam, perceberam e diminuíram também, trocando olhares curiosos. Queria manda-los irem procurar seu rumo, mas não podia. Seria dar bandeira demais. Os percebi se afastarem um pouco, e ainda sim se mantiveram por perto. Aos poucos fui me aproximando. Quando cheguei perto o suficiente, cruzei os braços e pigarreei. Ela se virou, assustada, e a sacola quase escorregou da mão dela. Seus olhos verdes se arregalaram, e um leve rubor subiu em suas bochechas. — Problemas com as compras, forasteira? — perguntei, minha voz tentando soar desinteressada, mas com um tom de escárnio sutil. Ela apertou a sacola. O rosto vermelho tanto pelo esforço, quanto pelo choque. A forasteira tinha um lugar que me segurava no lugar. Vi sua expressão mudar. Como se algo a tivesse incomodado. Ela parece ser tão nova. O que? Dezoito, dezenove anos no máximo? Eu deveria era dar o fora daqui. Mas minha curiosidade sempre fala mais alto. É legal a forma como fechou a expressão. — Não é da sua conta — respondeu, a voz mais firme do que eu esperava. Espremo os olhos, surpreso com sua petulância. Uma faísca de desafio. A primeira pessoa dentro dessa favela a fazer isso. Gostei. Soltei um sorriso de lado, um sorriso que eu raramente dava, especialmente para estranhos. — É minha da conta. Por que tudo o que acontece nesse morro é da minha conta. Os problemas, as pessoas e inclusive fosse é da minha conta. — disse me aproximando mais dela — Se cair, porque é fraca demais e não consegue nem subir com uma sacola vai atrapalhar a passagem. Minhas palavras pareciam ascender algo dentro dela. — Não vou cair — respondo brava — E o único atrapalhando a passagem aqui é você — retrucou, tentando passar por mim. Ajeitando a postura, a vejo segurar com força as alças da sacola e tentar passar por mim. Fiquei no caminho dela. Não iria deixá-la passar assim, não depois de me desafiar. — Deveria tomar cuidado, forasteira. Posso perder minha paciência. — digo em tom de alerta. Seus olhos demostram que finalmente ela entendeu com quem está falando. Ela não tira os olhos de mim, mas a vejo abaixar a guardar. — Pode me dar licença? — Posso… — as palavras saem arrastadas — Seus braços m*l estão se aguentando, forasteira. Quer ajuda? — ofereci, mas meu tom era mais uma provocação do que uma oferta genuína. Queria ver sua reação. Ela me olhou de cima a baixo, os olhos faiscando. — Não preciso da sua ajuda. Sei me virar sozinha. — Ah, é? — levantei uma sobrancelha. — Parece que não. Na ladeira, quase caiu. Agora, m*l consegue carregar uma sacola... — Foi um deslize. Não vai acontecer de novo. — Veio do interior, né? — perguntei segurando seu olhar no meu — Acha que a vida aqui é fácil? A expressão dela se endureceu. — Não é fácil em lugar nenhum. Mas sou acostumada a trabalhar duro. E não preciso de ninguém me subestimando. Nem mesmo você. Bingo. Ela tinha garra. Uma garota que não se intimidava com o "Don". Isso era novo. E, de alguma forma, surpreendentemente interessante. Um sorriso genuíno, quase imperceptível, cruzou meu rosto. Eu sabia que tinha provocado uma reação nela. E aquilo, de alguma forma, me fez querer mais.
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