O Inusitado Encontro

872 Words
Maitê Os primeiros dias no morro foram um turbilhão. Tentava me adaptar ao barulho constante, às subidas e descidas intermináveis, à forma como as pessoas viviam tão perto umas das outras. Eu estava exausta de procurar emprego no asfalto e de ouvir "não" atrás de "não". Decidi que era hora de tentar a sorte mais perto de casa. O morro tinha muitos pequenos comércios, talvez eu encontrasse algo. Um dia, Dona Neide me indicou uma pequena mercearia, um lugar onde a gente podia encontrar de tudo, desde sabão em pó até um corte de carne. “ — Talvez você devesse mudar seu foco — a senhora diz dando de ombros. — Dona Neide, nem foco eu tenho. Estou aceitando qualquer coisa, mas está impossível. As pessoas lá embaixo nem olham para a minha cara antes de dizer não. — Por que não tenta algo aqui? No morro? — Não sei... onde eu poderia procurar? — Tem vários lugares e gente precisando de pessoas. A mercearia pode ser uma opção. Lá sempre precisa de uma mãozinha, Maitê. Vê se o Seu João não te dá uma força. — A senhora acha? — Acho. Você já está aqui. Não vão te pagar muito, mas pode ser que seja o suficiente para você se manter. Enquanto isso, você vai procurando outras coisas. “ Com a esperança renovada, lá fui eu. A mercearia ficava no topo de uma ladeira ainda mais íngreme que a da minha casa. Ela tinha feito uma lista de compras e eu aproveitaria a oportunidade. O sol aqui era quente. O ar era denso. Mas eu podia desistir só porque meu corpo não estava acostumado a esse mundo. Minhas pernas ainda doíam por conta de tantas subidas, mas não tanto quanto nos primeiros dias. Teve noite em que me deitei na cama completamente exaltas, com as pernas em frangalhos e um único remédio para dor muscular que pudesse me ajudar. Mas isso já melhorou. A gente sempre se acostuma. Peguei o caminho do mercadinho e fui. Subi suando, ofegante, sentindo as coxas queimarem. Cheguei lá em cima, o coração disparado, e percebi que havia esquecido a lista de compras que Dona Neide tinha me dado. — Ah, não! — resmunguei para mim mesma, batendo a mão na testa. Eu era uma boba. Tinha que voltar. Virei para descer a ladeira e, bem nesse momento, dei de cara com um grupo de homens que subia apressadamente. O líder, um homem alto, com braços musculosos e tatuagens visíveis sob a regata preta, vinha na frente. Seus olhos, de um castanho intenso, eram duros, e a expressão no rosto era séria. Ele irradiava uma autoridade inquestionável, uma aura de poder que me fez paralisar. Era ele. O tal Rael. O "Don", como as pessoas sussurravam. Eu já o tinha visto de relance algumas vezes, sempre cercado por outros homens, sempre com aquele jeito de dono do mundo. Mas de perto, ele era ainda mais imponente. Sua presença preenchia o espaço, e eu me senti pequena, insignificante. Tropecei nos meus próprios pés, desequilibrando-me. Por um segundo, tive certeza de que cairia. O pânico me atingiu. Fechei os olhos, esperando o impacto com o chão de pedra. Mas o impacto não veio. Em vez disso, senti uma mão forte me segurar pelo braço, firme, impedindo minha queda. Abri os olhos e dei de cara com Rael. Ele estava me segurando, o olhar fixo no meu, sem uma ponta de surpresa, apenas uma expressão de... tédio? Ou era apenas o jeito dele? — Cuidado, garota. As ladeiras daqui não perdoam. Precisa olhar por anda — a voz dele era grave, profunda, e não tinha uma pitada de gentileza, mas também não era rude. Apenas... factual. Me recompus rapidamente, sentindo meu rosto esquentar. — Obrigada — murmurei, envergonhada. Soltei-me do aperto dele, que soltou meu braço quase que instantaneamente. Os homens que o acompanhavam olhavam para mim com uma mistura de curiosidade e diversão contida. Um deles, um grandalhão com um boné virado para trás, quase soltou uma risada, mas se conteve quando Rael lhe lançou um olhar. — Perdida? — ele perguntou, sem um pingo de emoção na voz. — Não... eu só... esqueci uma coisa e ia voltar — gaguejei, sentindo-me a pessoa mais patética do universo. Ele apenas assentiu, sem dizer mais nada. Seus olhos varreram meu corpo rapidamente, um olhar avaliativo que me deixou desconfortável. Por um instante, tive a sensação de que ele estava me vendo de verdade, por trás da minha fachada de "moça do interior". — Seja mais esperta da próxima vez — disse, e então, sem mais uma palavra, ele e seus homens continuaram a subir a ladeira, me deixando para trás, ainda com o coração aos pulos. Eu fiquei ali, parada, observando as costas dele sumirem na próxima curva. O "Don". O traficante. O homem mais temido do morro. E ele tinha me salvado de um tombo. Uma parte de mim sentia medo, a outra, uma estranha curiosidade. Ele era perigoso, sim. Mas havia algo mais ali, algo que eu não conseguia decifrar. E, para o meu desespero, uma faísca de interesse começou a acender em mim. Me recriminei, mas admit, ainda sentia o toque de seus dedos me segurando.
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