Maitê
— Ei, tudo bem aqui? — escuto a voz de Cabeça e levo um susto.
— Oi! Apareceu. Achei que não te veria hoje?
— E eu achei que você estaria trabalhando nesse horário — Cabeça retruca meio perdido.
— Me deram folga do mercadinho hoje. Parece que o movimento da semana diminuiu e como não sou fixa e nem tenho carteira assinada, eles me deram um dia de folga — digo dando de ombros e me levanto para dar um rápido abraço em Mateus.
— Entendi — concorda — E você quem é? Não lembro de terem contratado um Jardineiro aqui no morro.
Sem rodeios Cabeça se vira em direção a Mateus, cruzando os braços e esperando uma resposta. O tal "jardineiro" que Cabeça se refe era o Mateus, um garoto de uns dezessete anos, vizinho da Dona Neide.
— Esse aqui é o Mateus — tomo a frente quando percebo o garota ficar sem jeito — Ele é vizinho da Dona Neide e veio me ajudar plantar umas mudas que ganhei para enfeitar minha varanda.
— Tendi — Cabeça concorda.
— Oi. Só vim ajudar. — Mateus finalmente fala.
— Certo — Cabeça concorda — Eu preciso voltar para o meu posto — diz me olhando, mas logo volta a encara Mateus — Mas to de olho, entendeu?
— Sim — Mateus concorda.
— Vou indo nessa baixinha. Qualquer coisa, me chama.
— Tá — digo sorrindo — A gente se fala depois.
— Fecho.
Cabeça se despede e pega um caminho entre as vielas para subir o morro.
— Vocês são amigos? — Mateus me questiona.
— Cabeça é o primeiro amigo que fiz desde que cheguei. Depois de Dona Neide, é claro.
— Então acho que você está bem protegida. Ele é irmão do dono.—diz rindo.
Fico olhando Mateus, absorvendo a informação que ele acabou de soltar. Eu não fazia ideia de que Cabeça e Rael eram irmão. Bom, mas como eu saberia. Nunca conversei com cabeça sobre “familia”
Mateus era divertido, falava sem parar, e o riso dele era contagiante. Era bom ter uma companhia leve depois de dias de tanta tensão.
Voltamos a nos entreter em outros assuntos. Estávamos rindo de uma história boba que ele contava sobre a tia dele, quando o barulho de uma sirene cortou o ar do morro. Não era a sirene da polícia, mas o som característico que a comunidade usava para avisar sobre a chegada de algo "r**m". Meu sorriso murchou.
— Corre, Maitê! A milícia! Eles estão subindo! — Mateus gritou, o rosto pálido.
A milícia. Eu tinha ouvido falar deles. Rivais do pessoal do Rael, que de vez em quando tentavam invadir o morro para tomar o controle. O pânico me atingiu. Eu era do interior, nunca tinha vivenciado uma situação dessas.
Mateus me puxou pela mão.
— Vem, se esconde! Entra na casa da Dona Neide! Rápido!
Eu estava paralisada, o coração disparado. Sons de tiros começaram a ecoar de longe, subindo a ladeira. Minhas pernas pareciam de gelatina.
De repente, uma figura alta surgiu na minha frente, vindo do meio do beco. Rael. Ele estava com o fuzil na mão, a expressão fria e determinada, os olhos varrendo o ambiente. Seus "crias" vinham atrás, armados e em alerta máximo. Cabeça também estava ali, fiquei em choque olhando enquanto aquela cena.
— Maitê! Entra! AGORA! — a voz Rael saiu como um trovão, um comando inquestionável. Havia uma urgência nela que me assustou, mas também me fez reagir.
Eu corri para a casa da Dona Neide, que já estava me puxando para dentro. Mateus veio atrás. Mas antes que eu pudesse fechar a porta, vi Rael se posicionar bem na frente da minha casa, como um escudo. Ele apontou o fuzil para a direção de onde vinham os tiros, os músculos tensos, a postura de quem estava pronto para o combate. Ele não se importava em se expor, contanto que protegesse o perímetro.
De dentro da casa, ouvi mais tiros, mais gritos. O som da guerra se aproximando. E bem na minha frente, Rael, o Don, estava lá, protegendo não só a mim, mas a todos os moradores daquela viela. Um guerreiro, pronto para tudo.
— Ele sempre faz isso — Dona Neide sussurrou, tremendo ao meu lado. — Ele pode ser o que for, mas protege a gente. É o jeito dele de cuidar do morro.
Olhei pela fresta da janela e o vi lá, impávido, encarando o perigo de frente. Naquele momento, não era o traficante temido, nem o homem arrogante que me provocava. Era o guardião. E uma nova camada do meu fascínio por ele se formou. Ele era perigoso, sim, mas também era protetor. E isso, para a menina que veio do interior buscando um lugar seguro, era uma revelação poderosa. Uma parte de mim se sentiu segura, mesmo no meio do caos, sabendo que ele estava ali.