POV – Isabela
Eu sempre imaginei como seria voltar.
Talvez eu fosse diferente, talvez os corredores parecessem menores. Talvez eu me sentisse forte. Talvez tudo estivesse no lugar.
Mas quando eu piso novamente no prédio da faculdade, sinto como se o chão respirasse embaixo de mim.
Como se o lugar inteiro sussurrasse:
“Você não pertence mais aqui.”
Ou talvez isso seja apenas a minha cabeça, sempre pronta para me sabotar.
A porta automática se abre e o cheiro de café queimado, desinfetante barato e livros antigos me invade. Aquele cheiro que, um dia, me pareceu promissor. Agora, me faz sentir como se tivesse 18 anos de novo, cheia de planos… e completamente i****a.
Pessoas passam correndo, rindo, conversando, tropeçando em mochilas.
Gritos ecoam de algum veterano chamando para uma festa.
Um grupo de meninas sai correndo para tirar foto no mural.
A faculdade está viva.
Eu sou a única que parece um fantasma.
Respira, Isabela. É só um lugar.
Mas não é só um lugar. É onde tudo começou a ruir.
Minhas mãos tremem levemente enquanto ajeito a alça da mochila no ombro. Não deixo transparecer. Nunca mais deixo nada transparecer.
Eu caminhei até aqui para reconstruir o que sobrou de mim, não para implorar que o passado me aceite de volta.
Logo noto um grupo de garotas do meu lado. Elas cochicham e dão risadinhas empolgadas.
— Você viu o novo professor? — diz uma. — Me falaram que ele é coisa de outro mundo.
— Alto, barba, cara de mau… do jeito que eu gosto.
— E exigente, viu? Escutei que ele não passa pano pra ninguém.
— Melhor ainda.
Reviro os olhos internamente.
Claro.
O típico “professor gato”.
O comentário mais previsível do planeta.
Mas quando falam “barba” e “cara de mau”, sinto uma pontada estranha no estômago. Não de interesse, mas de alerta.
Homens assim… já destruíram demais.
Aperto o passo.
Não quero ouvir mais.
No corredor central, encontro o papel com minha grade de aulas. Confirmo a sala:
Bloco C, sala 204 – Ética, Sociedade e Comportamento nas Finanças. Professor: Arthur Moretti.
“Ótimo”, penso.
Um professor que dá aula de ética.
Com certeza deve ser um santo arrogante.
Subo as escadas, ouvindo meus próprios passos como se cada um carregasse um peso de anos. Quando chego na porta da sala 204, ela já está quase lotada. Gente rindo, gente mexendo no celular, gente que parece pertencer.
Eu não pertenço.
Mas vou fingir que sim.
Escolho uma carteira perto da janela. Meio da sala: o bastante para observar tudo sem chamar atenção demais. Sento, tiro o caderno, o estojo, coloco o celular no silencioso.
O coração ainda bate mais rápido do que deveria.
Primeiro dia. Você consegue.
As conversas aumentam.
Mais risadinhas.
— É ele, olha!
— Gente do céu…
— Se esse homem der bronca em mim, eu digo obrigada.
Respiro fundo e me viro apenas para conferir a cena, sem expectativa nenhuma.
E então…
ele entra.
E eu esqueço completamente de como se respira.
Ele é…
Impossível.
Alto. Ombros largos. Camisa azul clara dobrada nos antebraços, revelando veias marcadas e um relógio elegante. Calça social escura. Cabelos castanhos levemente bagunçados. Barba milimetricamente aparada.
E um olhar… Deus.
Frio.
Preciso.
Afiado como uma lâmina.
Ele não anda. Ele invade o ambiente.
E eu sinto.
Sinto no corpo inteiro que esse homem não deveria existir no mesmo espaço que eu.
Ele não sorri.
Não cumprimenta ninguém.
Não parece afetado pelos suspiros das alunas.
Simplesmente caminha até a mesa, coloca a pasta ali, pega um marcador e escreve no quadro:
PROF. ARTHUR MORETTI
Eu deveria olhar para o quadro.
Mas meus olhos se recusam a largar a nuca dele, o jeito como o tecido da camisa acompanha o movimento dos músculos.
Ridícula.
Você não está aqui pra isso.
Mas meu peito aperta, como se um fio invisível tivesse puxado minha atenção direto para ele.
Ele se vira para a sala.
E quando seus olhos percorrem as fileiras e finalmente encontram os meus…
Meu mundo vacila.
Castanhos intensos.
Não quentes — intensos.
Profundos de um jeito calculado, como se analisassem tudo e todos.
Por um segundo, eu esqueço de piscar.
Ele consulta a lista de chamada.
— Bom dia. — A voz dele é grave, firme, quase arrogante. — Bem-vindos à disciplina de Ética, Sociedade e Comportamento nas Finanças.
As meninas suspiram.
Os homens fingem que não estão impressionados.
— … Lucas Mendonça.
— Presente. — diz um garoto simpático ao meu lado.
Arthur continua.
Então ele diz:
— … Isabela Duarte.
Meu coração falha.
Levanto a mão devagar.
— Presente.
O olhar dele encontra o meu.
Ele segura o contato por tempo demais.
Eu sustento, porque não vou ser a menina frágil que abaixa o olhar.
Mas uma faísca passa pelos olhos de Arthur.
Algo selvagem, escondido, contido à força.
Ele limpa a garganta como se tivesse engasgado.
E desvia.
O que diabos foi isso?
Ele explica o conteúdo da disciplina. Não presto atenção.
Porque estou ocupada tentando entender por que olhar para ele me deixou com as pernas fracas.
E por que ele me olhou como se tivesse acabado de ver um problema que ele sabe que não deveria resolver.
Quando termina a apresentação, ele escreve uma frase no quadro:
“O MAIOR ERRO QUE VOCÊ JÁ COMETEU – E O QUE ELE FEZ COM VOCÊ.”
— Primeira atividade. — diz ele, sério. — Uma redação. Pode ser anônima. Mas tem que ser honesta.
Meu estômago afunda.
Honesta.
Ele quer honestidade.
Honestidade destruiu minha vida uma vez.
Mas minha mão se move por conta própria.
E as palavras saem.
Saem como se eu nunca tivesse tido escolha.
Falo de confiança quebrada.
De um vídeo íntimo exposto por quem jurou amar.
Do abandono.
Da fuga.
Da vergonha.
Da morte da minha mãe.
Da culpa que carrego desde então.
Quando termino, estou com as mãos trêmulas.
Não devia ter escrito isso.
Mas escrever foi como sangrar depois de anos segurando o corte aberto.
Ele passa recolhendo os papéis.
Quando pega o meu, nossos dedos se tocam.
Um segundo.
Nada demais.
Mas o choque percorre meu braço como um raio.
Ele levanta os olhos na mesma hora.
E eu… travo.
Ele não deveria olhar assim.
Eu não deveria sentir isso.
— Obrigado. — diz, com a voz estranhamente baixa.
Depois de algumas explicações, a aula termina.
Lucas se inclina na minha direção.
— Ei… tudo bem? Sou o Lucas.
— Isabela. — murmuro. — Só… reacostumando.
— Se precisar de ajuda com a matéria, ou… sei lá, com o professor carrancudo ali… — ele ri. — Tô à disposição.
Sorrio de leve.
Ele é gentil.
Normal.
Seguro.
Mas meu olhar vai sozinho para a mesa da frente.
Arthur está sentado.
Sozinho.
Lendo as redações.
E então ele pega a minha.
Eu reconheço na hora: o papel dobrado no meio.
Observo o rosto dele enquanto lê.
Primeiro, neutralidade.
Depois…
confusão.
Raiva?
Dor?
E então… algo que eu não esperava.
Vulnerabilidade.
O maxilar dele trava.
Ele fecha a folha devagar, como se tivesse medo de amassar meu passado.
E levanta os olhos.
Direto nos meus.
Eu congelo.
Porque aquele olhar…
não é de professor.
É de homem.
É de alguém tentando lutar contra algo que já perdeu.
A sala esvazia.
Lucas se despede.
E quando percebo, estamos só eu e ele.
Arthur entrelaça os dedos sobre a mesa, observa o próprio movimento por um segundo, e então levanta o olhar para mim.
— Senhorita Duarte.
A maneira como ele fala meu sobrenome faz minha pele inteira arrepiar.
Eu paro na porta.
— Sim, professor?
Ele levanta meu papel.
Um movimento lento, controlado… perigoso.
— Na próxima vez que decidir entregar a sua verdade para alguém… — seus olhos descem para meu corpo e voltam num segundo rápido que me faz perder o ar — escolha melhor a quem você dá esse poder.
Meu coração dispara tão forte que sinto até nas orelhas.
Eu devia ficar ofendida.
Eu devia questionar.
Mas meus lábios se movem sozinhos, sorrindo torto, insolente.
— Não se preocupe, professor. — digo, sem desviar os olhos. — Eu aprendo rápido com os meus erros.
Por um instante, algo quebra dentro dele.
Ele inclina levemente a cabeça, como se estivesse avaliando o risco de cruzar a sala inteira e segurar meu rosto entre as mãos.
A respiração dele muda.
Um músculo salta em sua mandíbula.
Os olhos descem para minha boca.
E então…
Ele fecha os olhos por meio segundo.
Como se estivesse lutando contra um demônio.
— Está dispensada, senhorita Duarte. — diz, com a voz mais grave do que antes.
Saio.
Mas, quando cruzo a porta, sinto o olhar dele queimando minhas costas.
Eu deveria correr.
Eu deveria me afastar.
Mas tudo que penso enquanto desço as escadas é:
Eu não devia desejar o professor.
Mas alguma coisa me diz que ele já começou a desejar a aluna.