Capitulo 2

2302 Words
A rua principal é comprida, por isso, caminhamos durante aproximadamente dez minutos numa espécie de travessia estreita e bem movimentada. Conforme subimos a rua, noto rostos diversos passarem por nós e sinto-me invadida por olhares curiosos. É nítido o buchicho alheio enquanto caminhamos em meio a um questionário da senhorinha, no qual tento desconversar a respeito de minha visita à comunidade. Respondo apenas o necessário: que estava visitando uma tia querida. Ela muda a conversa e começa a falar sobre suas netas. Diz que uma delas deveria ter por volta de minha idade e que possui muito orgulho dela. Sorrio ao perceber nitidamente o seu amor pela mesma. Ao nos aproximarmos de sua casa, ela me oferece água e café; algo completamente genuíno, sem segundas intenções aparente. Respondo que agradeço a gentileza, mas que precisarei seguir a viagem. Confesso que senti um pouco de receio em adentrar uma favela sozinha, mas havia me predisposto a isso desde o princípio. Tento não encarar muito os moradores, mesmo que a maioria olhe para mim como se eu fosse uma espécie de atração de circo. Noto que as casas são amontoadas na beirada das calçadas e aproveito para procurar alguma plaquinha de aluga-se. Observo uma padaria na esquina de uma rua transversal, e entro, a fim de saber mais sobre o local. — Tem água? — Um rapaz de cabelos pintados de loiros está do outro lado do balcão, e vejo-o fazer que sim com a cabeça. Ele me pede um minuto e volta em meio, com a garrafa na sua mão. Cansada e morrendo de sede, bebo o líquido de uma única vez, colocando-a sobre o balcão em seguida. Olho em volta e observo alguns homens tomando cerveja, mesmo que ainda seja de dia e no meio da semana. — Matou quem te matava, moça! — Um sorriso cheio de dentes se forma em seus lábios conforme respondo que sim com a cabeça. — Maicon, cria do morro! — Ele me faz um joinha com as mãos quando penso em cumprimentá-lo. — Legal! Eu sou a Clari.... — Penso um pouco mais e, tentando me proteger, completo: — Clara! — Não posso nem pensar em falar o meu nome verdadeiro aqui dentro. Eles podem vincular o meu nome com o de Lucas, de alguma forma. Não dá para me permitir correr esse risco! — Você é cria daqui há muito tempo, Maicon? — pergunto usando a mesma gíria que a dele, até mesmo para me misturar, enquanto ouço-o me responder que sim. — Tô precisando de um aluguel baratinho, e me indicaram aqui, que é pertinho de onde eu morava... — minto, tentando não pensar no quanto as minhas pernas estão tremendo nesse momento. Nunca fui de mentir, mas ultimamente penso estar boa nisso. — Onde eu morava, tava ficando difícil de levar e acabei ficando desempregada posteriorm... — faço uma pausa, pensando numa forma mais despojada de falar — quer dizer... fiquei sem trabalho e tô precisando me mudar. Será que teria alguma casinha baratinha para uma menina que tá precisando muito mesmo? — Mostro-lhe o meu melhor sorriso, torcendo para agradá-lo. — Hmmm... Olha, moça, pelo que sei, tem uma casinha alugando sim, mas é de cara pro gol, não sei se uma princesa como você iria querer... — Ele pisca um dos olhos para mim, e esbugalho os olhos. O que ele quer dizer com “de cara para o gol”? Tenho receio de perguntar besteira, então, apenas digo que posso dar uma olhada na casa caso ele conseguisse me levar até lá, e ele concorda. ++++ Maicon diz que a quitinete não fica muito longe. Enquanto subimos a rua, ele me conta que a padaria em que trabalha, também é um bar, e que, na verdade, ele pertence ao seu pai. — Tenho certeza que tu vai gostar da casa, princesa! O barraco é velhinho, mas jeitosinho! — Maicon fala embaixo do seu guarda-chuva, uma vez que possui vitiligo, uma doença que é caracterizada pela falta de melanina. Eu não havia notado ainda, mas é perceptível algumas manchas brancas em sua pele escura. Assim que chegamos na frente da casinha, posso perceber que não parece muito grande. O que é bom, uma vez que moraria sozinha nela. A pintura clara está desgastada, e noto que contém apenas uma janela pequena ao lado da porta principal. Maicon grita pelo nome da senhora Maria, que pelo que diz é a proprietária da casa e que mora duas casas ao lado dessa. Ela logo se dispõe a me mostrá-la. Ao entrarmos no quadrado que é o quintal, somos recebidos por alguns arbustos e um canteiro malcuidado de rosas, fato que já me deixa contente, uma vez que amo cuidar de plantas. Há um pequeno lance de escadas e, ao abrirmos a porta, já estamos dentro do quarto. A casa não possui mobília, algo que eu já imaginava, e consigo enxergar nitidamente a cozinha de onde estou. Há algumas infiltrações que, de acordo com a proprietária, já foram consertadas, porém sem serem pintadas posteriormente. A pintura está mais nova do que do lado de fora, o que me alegra um pouco, e há dois armários na cozinha, que parecem novos. Tateio o mármore da bancada, que divide a cozinha com o quarto, e sorrio ao sentir o geladinho em meus dedos. — O banheiro não é grande, minha filha, mas vale a pena só por ela ser independente! — Dona Maria diz sorrindo, e Maicon completa: — Sério mermo, princesa! Esse barraco aqui é a maior responsa, a maioria dos outros é um dentro do outro! Tudo embolado! Maior doideira! E a dona Maria, aqui, é gente boassa mermo! A única coisa mermo, é que tu teria que morar de cara pro gol, né, como já te disse. — De cara pro gol pra quem? — inquiro saber. — Cê não sabe, fia? — Dona Maria comenta parecendo realmente preocupada. — Os caras, princesa.... Os caras moram de frente pra esse barraco! — Maicon completa, e automaticamente meus olhos seguem para a rua, através da janela. Do outro lado, há uma casa mais conservada do que a que estamos e um pouco maior. Observo que está silenciosa e é toda fechada por um muro alto. Me aproximo mais da janela e consigo visualizar melhor, finalmente passando a entender: a casa fica de frente para o tráfico. Dona Maria olha para mim, como se já tivesse perdido a futura inquilina. Acredito que seja difícil para ela alugar essa casa justamente por esse fato, mas, mesmo me tremendo toda enquanto penso nos pós e contras dessa contratação, aceito ficar com a casa, uma vez que será mais fácil para eu conseguir seguir no meu intuito de descobrir a verdade por trás da morte do meu irmão. Pago o mês de depósito pedido por ela e prometo fazer a mudança na semana seguinte, já que precisaria comprar móveis de “segunda mão”, uma vez que não posso dar uma de garota do asfalto, que possui tudo de mãos beijadas pelos pais. Mesmo que isso seja verdade! ++++ Aproveitei a última semana, para fazer as compras de alguns utensílios e móveis que precisaria ter em casa. Precisei renovar algumas peças do meu guarda-roupas para conseguir me adequar ao novo ambiente, uma vez que roupas sociais e alguns vestidos não serviriam. Necessito estudar o ambiente e me infiltrar em bailes e afins, por isso, a primeira coisa que pretendo fazer nesta manhã, dentro da comunidade, é explorar o lugar onde estou morando. Pelo menos ao redor da minha casa. — E aí, morena! A mina tá precisando de ajuda na mudança? — Um homem fala ao sair de dentro da casa que fica de frente para a minha. Justamente, a tal casa. Sua pele n***a, brilha por causa do sol que está quente, e observo seus olhos escuros me esquadrinharem de cima a baixo conforme se aproxima de mim. — O Maiquinho, filho do seu Zé, me ajudou, mas valeu! — Sinto minha mão direita suar. — Já botamos tudo para dentro! As caixas eu desfaço depois. — respondo conforme fecho o portão de casa. — Se quiser um gás aí nesse jardim, morena, só falar comigo. Ele tá meio caído por causa desse calor que tá fazendo! — Muito calor mesmo! Cê entende de jardins? — ele gargalha. Seguimos pela calçada, e noto alguns moradores se afastarem de nós conforme andamos. — Oh, as nóia! — ele ri. — Cê acha que o Coringão, aqui, tem jeito nisso? — Coringão? — Franzo a testa. Ele parece perceber a minha confusão e emenda: — Coringa, ao seu dispor... — Ele beija a minha mão, de forma quase galanteadora, e continua a andar. — O Hades que entende dessas treta aí! Eu sou mera ponte... — ri. Hades... A lembrança de Lucas, mencionando justamente esse nome, me vem à mente, e sinto o meu coração acelerar gradativamente. Comprimo as mãos e solto devagar: — E quem é esse? — Faço-me de desentendida enquanto peço a Deus, mentalmente, que me dê sabedoria para não indagar mais a respeito desse homem. Não posso colocar tudo em risco ainda. Ele para no meio do caminho, virando-se na minha direção, parecendo descrente. — Cê não sabe quem é o Hades, princesa? O homem é o cara! Dono da p***a toda! Meu, seu e dono de todo esse morro! — Não há indignação na sua voz, inclusive, percebo um divertimento. — Meu? — Forço um sorriso amistoso. — De todos.... Ele é o rei do submundo. Deus do morro e do fogo! — ele refere-se ao nome do verdadeiro Deus do submundo. Continuamos a caminhar, conforme finjo compreensão, e um tempo depois ele volta a falar: — A tia Maria falou que cê mora sozinha, princesa. — Por que todos aqui me falam que sou princesa? Seu sorriso se torna travesso. — Toda patricinha que vem do asfalto, se torna princesa no Leão. — Aaah! — Perco a fala. Paro de frente para o mercadinho da esquina, sabendo que a nossa conversa será encerrada em breve. — Fica na moral na comunidade aí, princesa, nós não mexe com morador, ainda mais trabalhador! Se quiser aparecer no pancadão bolado mais tarde.... É só seguir o som. Levanto uma sobrancelha, vendo-o se afastar. Pancadão Bolado? Ao entrar no mercado, procuro por alguns itens básicos que precisarei ter em casa caso queira sobreviver. Como ainda possuía algumas economias guardadas, consigo colocar no meu carrinho utensílios para duas semanas. E quando digo o básico, refiro-me a trinta ovos que serão a minha proteína quinzenal. Gastei o que não tinha para conseguir comprar uma cama de solteiro, um fogão e uma geladeira de segunda mão. OLX salvando a pátria! E ainda tive que acertar as estadias do motel barato que passei a última semana; ou seja: não me sobrou muita coisa e m*l comecei o mês. Já estou pensando na mesada do mês seguinte. Minha mãe que jamais ouse ouvir esse meu pensamento, mas sorte que não vou precisar pagar nem luz e nem água, porque é o que me segurará no momento. — E aí, sou a Stephanie, cê é moradora nova do Leão, né? — A menina do caixa sorri educadamente para mim enquanto enrola com os dedos uma mecha de seus cabelos claros, e confirmo com a cabeça. — A vó falou de você, percebi pela mecha azul no cabelo. — Sua avó? — A coroa do ônibus.... Do dia que tu brotou na comu. — Ah... — sorrio assistindo-a assentir com a cabeça. — Ela me falou que tinha uma neta, mas não sabia que era tão simpática. Eu sou a Clara. Stephanie passa as poucas mercadorias que peguei enquanto trocamos algumas palavras. Confesso que cozinha não é meu forte, mas nada que a internet não me ajude. — Cê é doida de morar na frente da boca... — ela comenta baixinho. — Se sou eu, já tava me cagando toda se eu não fosse cria da comu. — Eu sei me virar... — Ah, isso eu tenho certeza! Mesmo porquê, aqueles meninos não mexem com mulher. A não ser pra.... — ela ri, e dou de ombros fingindo não me importar com o seu comentário. — Mas é bom não ficar zanzando por aí quando os policiais brotarem... — Ela refaz o coque nos cabelos castanhos claros, quando eles teimam em se soltar. — Pode deixar. — Solto um sorrisinho frouxo e aproveito para falar: — Está sabendo do pancadão bolado? — Faço aspas com os dedos, e ela ri. — Sim, eu e minha amiga vamos brotar lá mais tarde, se tu quiser ir... A Nath é bem legal. — Por mim, belê, que horas nos encontramos? — questiono conforme coloco as mercadorias dentro das sacolas, após pagar por elas. — Passo na sua casa às onze. — Fechado! — Pego as sacolas e, após me despedir, viro-me disposta a ir embora, porém, noto que há uma folha de papel colada na parede e percebo que o mercado está aceitando currículos. — Stephanie... — volto a falar. — Pode me chamar de Steph... — Ah! Você é uma fofa! — sorrio enquanto aponto para o cartaz. — Qual é a dessa vaga? — É para caixa, quer? Eu falo com o seu Zé pra tu. — comenta conforme vai passando as mercadorias do próximo cliente. — O seu Zé, que é pai do Maiquinho? — Ele mesmo! Eles têm a bardaria e o mercadinho no Leão. — Bardaria? — Franzo a testa, e ela emenda: — Bar e padaria. — gargalho. — Não tinha pensado por esse lado. Se tu conseguir pra mim... — Já é! — Ela pisca um dos olhos e retorna para o seu trabalho.
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